Universal e particular. Poucos momentos e sentimentos na vida humana guardam esse aspecto onipresente e, ao mesmo tempo, tão individual quanto o luto. Se a morte acompanha nossa espécie desde o primeiro respiro na face da Terra, a tristeza de perder alguém vem em seu encalço, marcando corações e culturas por meio de choros, rituais, cantos, orações e comoções públicas e privadas. Assunto árduo por natureza, do qual com frequência nos esquivamos, ele protagoniza a coletânea de textos Lutos, organizada pelas psicólogas Márcia Noleto e Mariana Magalhães, que, ao reunir relatos de personalidades que vivenciaram em primeira pessoa ou muito de perto a experiência, propõe uma delicada reflexão sobre os tipos de luto e os meios para confortá-los.
As autoras não têm a pretensão ou a ilusão de entregar uma “fórmula mágica” para aliviar a dor da perda. Em vez disso, apresentam, em histórias e depoimentos emocionantes, dezoito formas diferentes de luto: a morte de um amor, de um filho, de um pai, de um bichinho de estimação… Ou o luto por uma gestação que não vingou, por uma pessoa que desapareceu, por um país que encarou uma tragédia coletiva — caso do Brasil durante a pandemia de Covid-19. Cada capítulo traz uma figura de destaque na sociedade com esse marco em sua biografia. Somos convidados a acompanhar Gilberto Gil, que perdeu um jovem filho em um acidente; Lucinha Araújo, mãe do compositor Cazuza; Monica Benicio, a viúva de Marielle Franco; Margareth Dalcolmo, médica emblemática na luta contra o coronavírus, entre outros nomes. Em muitas passagens, o mergulho nos sentimentos de quem escreve é tão íntimo que o leitor é tomado por uma sensação de estar nadando nas páginas de um diário pessoal. Quando não arranca lágrimas, a leitura certamente aguça a empatia e conduz a profundas meditações (leia o depoimento da filha de Fernanda Young na pág. 78).
“Eram muitas coisas. A perda do futuro. Aquilo que deixava de ser possível para ele. Todas as grandes interrogações, todos os grandes enigmas, o futuro interrompido para uma pessoa de 19 anos.”
Gilberto Gil, em texto sobre a morte do filho, Pedro, em 1990
Organizadoras da obra, Márcia e Mariana foram unidas pelo luto da maternidade, mas de modos diferentes. A primeira sofreu com a perda da filha de 20 anos num acidente de helicóptero. A segunda, com o fato de nunca ter conseguido concretizar o sonho de gerar um filho. A parceria e a confidência que encontraram uma no colo da outra deram origem à centelha para o livro, encorpado com seus convidados. “A esperança não vem de uma fala ou de um conselho, ela vem da experiência compartilhada”, diz Márcia. É assim que o leitor poderá encontrar e processar uma dor, ainda que antiga, na dor do outro. “Conversar com pessoas que viveram a mesma situação pela qual passei foi um modo potente de me reerguer”, diz Mariana. “No luto, você não precisa de ninguém para te motivar. Precisa de alguém que te dê carinho, que te escute.”
“Eu chamaria o luto da Covid-19 de luto pressentido, porque, por mais que houvesse esforços, que você fosse bem atendido, existia uma chance de morrer.”
Margareth Dalcolmo, médica referência no combate à pandemia
Em um dos relatos, Daniel Carvalho, coordenador do projeto Luto do Homem, voltado para o acolhimento de masculinidades enlutadas, conta como foi perder a filha, Joana, seis dias após o nascimento — e como a morte de uma pessoa que tem passagem tão efêmera pelo planeta costuma ser negligenciada. Para Magalhães, o luto neonatal e o gestacional estão entre os mais menosprezados. “Enquanto você não é mãe, enquanto não há uma criança que viva, que tenha um nome e que cresça, é como se não houvesse a presença de uma pessoa. Portanto, esse luto não é reconhecido, ele é invisibilizado”, descreve.
O afã de compartilhar experiências para ajudar a si e aos outros foi o que moveu Márcia Noleto a criar, em 2015, o Instituto Mães Semnome. O projeto carrega simbolismo desde a sua designação: “Quando você perde os pais, fica órfão; quando perde o marido, fica viúva; quando perde um filho… Não há nome no dicionário que explique essa perda”. Assim como Márcia e Daniel, outro enlutado que decidiu lutar pela causa, fomentando discussão, suporte e acolhimento é Tom Almeida. O ativista por trás do projeto inFINITO perdeu a mãe, o pai e o primo e, buscando dar sentido à sua dor, lançou um movimento para vencer o tabu de falar de morte e finitude. “Temos a cultura de colocar esses temas debaixo do tapete”, afirma.
“Ressignifiquei a dor transformando-a em instrumento de motivação. Passei a girar pelo Brasil e pelo mundo pedindo justiça para Marielle e Anderson, e foi o que me manteve viva.”
Monica Benicio, viúva de Marielle Franco
Almeida adotou como missão ressignificar o fim da vida a partir da ampliação do repertório e da musculatura emocional dos enlutados. Um processo que, com suas particularidades e contextos diversos, não raro exige desvencilhar-se de receios, constrangimentos e mesmo superstições. Como? Por meio do diálogo. “A morte não é só um momento de dor e sofrimento, ela também é um momento de conexão e de intimidade”, diz Almeida. “É um momento de se deixar ser vulnerável para falar sobre o que realmente importa.”
Espírito semelhante guia o livro recém-lançado pela Summus Editorial. Lutos não é uma enciclopédia, nem um manual de autoajuda, muito menos uma cartilha para atravessar episódios difíceis. “Desejamos que ele seja um instrumento para que cada um encontre o próprio antídoto, dentro do seu tempo”, escrevem as autoras. “A dor não é soberana, ela não nos engole por completo. Ela nos mastiga ao longo dos anos, mas a digestão é da nossa responsabilidade”. Se a morte é a única certeza que todos temos na vida, encará-la será sempre tarefa de foro íntimo e intransferível. Contudo, ouvir quem passou pela dura experiência da perda ou compartilhá-la parece ter, sim, um efeito terapêutico.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878