Em alguns anos, alguém certamente perguntará quais mudanças impostas pela pandemia moldaram o futuro da humanidade. Os mais céticos talvez digam que o uso contínuo de máscara apenas acrescentou um acessório à indumentária cotidiana. Outros analistas afirmarão que o comércio eletrônico e o ensino a distância ganharam adeptos, mas as lojas físicas e as aulas presenciais deverão coexistir ao lado de seus pares digitais, pouco diferenciando-se do que eram antes da Covid-19. Ao que tudo indica, nenhuma transformação será tão profunda quanto a possibilidade de trabalhar em qualquer lugar, e não apenas no escritório. Com o risco de contágio pelo vírus, empresas de quase todos os setores e países trocaram a labuta tradicional pelo home office. E, sim, funcionou, pelo menos enquanto era uma ameaça real colocar os pés na rua. Mas eis que a vacina eliminou a obrigatoriedade do distanciamento social e muitas companhias passaram a convocar seus funcionários para o retorno ao velho e consagrado modelo. Para surpresa de ninguém, a maioria deles não quer. Agora, uma indigesta frente de batalha opõe patrões e empregados.
Um episódio recente teve como protagonista Elon Musk, o homem mais rico do mundo. Em e-mail enviado a seus 100 000 funcionários, Musk exigiu o retorno imediato às unidades da empresa: “Todos na Tesla são obrigados a passar, no mínimo, quarenta horas no escritório por semana. Se você não aparecer, vamos supor que renunciou”. No Twitter, fez troça com o tema, dizendo que quem não concordar pode “fingir que trabalha” em outro lugar. Não é um caso isolado. A Apple estipulou um rígido cronograma de retorno ao trabalho no escritório. Como resposta, um grupo chamado Apple Together produziu uma carta, assinada por mais de 3 000 funcionários, pedindo às chefias que adotem em definitivo o home office — ou abandonariam a empresa. “Parem de nos tratar como crianças que precisam saber quando e onde devem estar e qual lição de casa devem fazer”, escreveram.
O nível de insatisfação é alto no gigante criado por Steve Jobs. Segundo um estudo da rede social corporativa Blind, 56% dos funcionários da Apple estão ativamente procurando outros empregos. De fato, não é baixo o risco de ocorrer uma debandada se a empresa não ceder. A intransigência já levou à saída de Ian Goodfellow, que ocupava o cargo estratégico de diretor de machine learning da companhia. O que chama a atenção nos dois casos é que a resistência em aceitar a nova realidade vem de empresas reconhecidas pela capacidade extraordinária para inovar e que, portanto, deveriam estar mais abertas a mudanças de rumo. Surpreende também o fato de elas dominarem mais do que ninguém os novos recursos digitais, o que supostamente as beneficiaria na adoção do trabalho remoto.
A questão não é tão simples quanto parece. O trabalho híbrido e flexível — ou seja, o profissional vai ao escritório quando necessário e dá expediente em casa se for preciso — parece ser a tendência no mundo corporativo, mas ele não se enquadra em certas categorias profissionais. Enquanto robôs não assumirem definitivamente os bisturis, médicos cirurgiões precisam, afinal, estar ao lado de seus pacientes. A mesma lógica vale para operários que realizam trabalhos que nenhuma máquina é capaz de executar. Também é preciso dizer que o cenário econômico permite que os funcionários americanos se sintam encorajados a peitar padrões. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego é de 3,6%, uma das mais baixas da história. Se um cientista de dados deixa a Microsoft porque foi obrigado a ir ao escritório, é boa a chance de encontrar posição equivalente em outros gigantes da tecnologia. No Brasil, o quadro é diferente. São 11,3 milhões de desocupados e a luta pelas melhores vagas costuma ser acirrada. Portanto, não há muita margem de manobra para que o funcionário faça exigências sobre o local de trabalho para os seus superiores.
A preferência pelo modelo remoto, vale frisar, é esmagadora. Uma pesquisa feita pelo Grupo Adecco, especialista em recursos humanos, com 15 000 trabalhadores de diversos países, incluindo o Brasil, apontou que 53% preferem o modelo de flexibilização da jornada, e 82% se sentem tão ou mais produtivos em casa do que no escritório. “O ser humano é realmente eficaz em se adaptar”, disse a VEJA o antropólogo sul-africano James Suzman, autor do livro Trabalho — Uma História de Como Utilizamos o Nosso Tempo da Idade da Pedra à Era dos Robôs, que se tornou referência no assunto. “Quebrar estruturas complexas é difícil, mas o primeiro passo é reconhecer que o modelo não funciona. E as pessoas estão fazendo as perguntas certas no momento.”
Por aqui, empresas de diferentes setores buscam alternativas para unir o melhor dos dois mundos. O Itaú Unibanco adotou três modelos: presencial, para os colaboradores cujas funções demandam presença no banco todos os dias; híbrido, para times que precisam trabalhar nos escritórios com frequência; e flexível, que prevê maior autonomia. “Acompanhamos a implantação para fazer ajustes”, diz Valéria Marretto, diretora de RH do Itaú. No Google, estabeleceu-se uma rotina de três dias no escritório e dois em casa. A regra é global, mas pode ser adaptada de acordo com as necessidades de cada funcionário, que escolhe se quer passar mais ou menos tempo na empresa. “Vemos o modelo híbrido como uma oportunidade de redesenhar a rotina”, diz Carol Priscilla, gerente de RH da big tech.
Se a transformação se confirmar, ela exigirá até a reorganização das cidades. Em São Paulo, a taxa de vacância de imóveis corporativos de alto padrão chegou a 24,72% no último trimestre de 2021, um dos índices mais altos da história recente. A consultoria financeira PwC, por exemplo, devolveu um prédio de vinte andares que mantinha na capital paulista. Em seus novos — e menores — endereços, desenhou um projeto arquitetônico para valorizar os encontros presenciais. “Já havia uma vontade de mudança por parte dos funcionários”, afirma Marco Castro, sócio-presidente da PwC Brasil. “A gente preservava coisas sem sentido e quando veio a pandemia decidimos radicalizar.” Agora, o trabalho híbrido vale para todos os funcionários da unidade brasileira.
Nem todos estão ansiosos para abandonar o antigo modelo. Os questionamentos são válidos. Eles vão da perda de cultura da companhia à impossibilidade de trocas imediatas entre os funcionários, o famoso olho no olho. Na discussão sobre o futuro, diversos aspectos devem ser levados em conta: o tipo de atividade da companhia, sua cultura e, principalmente, seu grau de maturidade. O importante é olhar para a questão com a seriedade que merece. “Há muita ênfase no que chamamos de novo normal ou modelo híbrido, mas o que se observa é uma profunda mudança na maneira como as pessoas se relacionam”, afirma José Augusto Figueiredo, country head do Grupo Adecco no Brasil. “O desafio agora é descobrir como reter talentos sem contar com as fronteiras físicas do escritório.”
Experiências passadas ensinam que grandes transformações sempre despertam resistência. No Brasil, o décimo terceiro salário foi incorporado apenas nos anos 60 do século passado, e muitos analistas disseram que as empresas quebrariam. Claro, não quebraram. Os ventos da sociedade costumam ser irrefreáveis. E quem não se adaptar, de um lado e do outro, provavelmente perderá o curso da história.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793