No ramo das bebidas, os produtos autorais costumam ser associados apenas a cervejas ou cachaças. Tanto é assim que os itens artesanais viraram febre nos últimos anos e levaram entusiastas a fabricar os próprios rótulos domésticos. Agora, a novidade chega ao universo dos vinhos. Após passar treze anos trabalhando no premiado grupo Ventisquero, o enólogo chileno Sergio Hormazabal decidiu seguir carreira-solo — na verdade, junto com a mulher, a paisagista Macarena Guzman, e os dois filhos — e criar a Viñateros de Raiz, uma pequena vinícola instalada no jardim de sua casa em Melipilla, a 70 quilômetros de Santiago. Ele diz que a ideia é priorizar questões ambientais. Além de adotar técnicas de agricultura regenerativa, produz todas as uvas de forma orgânica. Graças a essas iniciativas, e obviamente à qualidade de seus vinhos, Hormazabal vem conquistando boas pontuações com as bebidas que produz. O enólogo foi um dos trinta produtores que participaram da primeira edição da feira VinAu, realizada em São Paulo na última semana. Centrado em pequenas vinícolas e rótulos artesanais chilenos, o evento marca o lançamento da nova edição do Guía Vinau, criado pelo reputado sommelier Francisco Zúñiga e que destaca apenas vinhos autorais.
Trata-se de um movimento crescente de enólogos e produtores de diversos países que estão mesclando métodos antigos de produção de vinhos com um olhar moderno sobre a bebida. O vibrante fenômeno tem resultado em vinhos fora da curva. As raízes dessa corrente vieram, como não poderia deixar de ser, da França. Um grupo de viticultores liderado por Marcel Lapierre passou a cultivar uvas sem insumos químicos e com baixa intervenção ainda na década de 80. As garrafas começaram a se espalhar pela Europa e, depois, pelos Estados Unidos. Pouco a pouco, outros enólogos seguiram caminhos parecidos. Agora, a cena autoral é ampla, com variedade de nomenclaturas e diferentes tipos de terroir. Há os vinhos naturais feitos com uvas de agricultura orgânica fermentadas espontaneamente por leveduras selvagens e nada mais, além de processos de vinificação natural, em que nenhum aditivo é adicionado às uvas.
O Brasil entrou na onda. A Vivente Vinhos Vivos, do Rio Grande do Sul, é uma iniciativa dos sócios Diego Cartier e Micael Eckert, que trocaram a carreira no mercado de cerveja artesanal para fundar a primeira vinícola natural do país. Segundo eles, a empresa tornou-se referência por oferecer rótulos sempre novos, fiéis à colheita daquele ano. “O vinho natural é uma forma de contracultura e expressa o que foi cada safra e as características do terroir”, afirma Cartier. “Trata-se de um produto vivo e que vai muito além dos aspectos sensoriais. Não há padronização e existe cuidado e respeito com a natureza, o tempo e a saúde”, garante o empresário.
A maior feira do setor na América Latina, a Naturebas, tem o Brasil como palco. A iniciativa surgiu em 2013 como um desdobramento das atividades da Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, de Lis Cereja, que aposta na agricultura orgânica e oferece menus sazonais. “Nós estávamos cansados de não ter nenhuma iniciativa de vinhos naturais e levantamos a primeira edição em apenas um mês”, pontua Lis. A feira cresceu desde então e passou a oferecer um mapeamento dos produtores brasileiros que trabalham de forma artesanal e natural. Em 2022, a Naturebas será realizada pela primeira vez no Uruguai, como parte de uma tentativa de unificar o cenário na América Latina. Para quem busca sabores europeus, há no mercado brasileiro importadoras como a De La Croix, de rótulos franceses. Além disso, os vinhos naturais vêm ganhando espaço nas cartas de restaurantes de ótima reputação. Com todas essas iniciativas, o momento parece ser ideal para quem pretende se aventurar pelo universo dos rótulos autorais, formado por pequenos produtores que valorizam a vinificação artesanal. Não há dúvida: a contracultura do vinho é uma viagem saborosíssima.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804