“Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais.” Essa frase do escritor francês Victor Hugo (1802-1855), dita lá no século XIX, revela que os princípios do veganismo — a filosofia de vida que busca excluir todas as formas de exploração e crueldade com animais para alimentação e outros produtos do cotidiano — vêm lá de trás. À mesa, a onda chegou há alguns anos com pompa e circunstância, na forma de hambúrgueres sem carne e snacks sem conservantes. A novidade, agora, é a explosão de um outro setor, o da beleza. Até 2025 a indústria global de cosméticos veganos terá crescimento de 25% ao ano, chegando a um faturamento de 20,8 bilhões de dólares. A taxa de expansão é 10% maior do que a do mercado convencional, segundo dados do instituto de pesquisa americano Grand View Research. É fenômeno atrelado aos interesses das novas gerações. A Z, sobretudo, dos que nasceram no fim dos anos 1990 e são agora jovens adultos, topa pagar a mais por produtos que não firam a natureza.
Nesse caminho, empresas veteranas e reputadas começam a voltar seus olhos para a janela aberta — porque querem lucro, sem dúvida, mas também porque precisam estar de mãos dadas com o bom senso. Em 2018, a L’Oréal anunciou a compra da Logocos, um dos principais fabricantes alemães de cosméticos do bem. Foi o marco inicial de um movimento muito interessante. No Brasil, há companhias que crescem e aparecem com a pegada. Marcas pouco conhecidas começam a desafiar outras já estabelecidas. A Simple Organic oferece cosméticos “orgânicos, veganos, naturais e cruelty-free”, reconhecidos pela Peta, a entidade internacional que briga contra a manufatura atrelada à crueldade animal. A Noviole trabalha com fórmulas desenvolvidas por dermatologistas. A B.O.B (Bars over Bottles) é muito procurada.
Há, porém, dores do crescimento que não podem ser negligenciadas. As grifes são sérias, respeitam as regras, mas muitas usam produtos — como conservantes e corantes (veja no quadro) — que não as autorizaria, ao pé da letra, a exibir com orgulho o rótulo de 100% naturais. “Qualquer produto precisa ter conservantes ou se degrada, ainda mais extraídos de plantas”, diz Edileia Bagatin, professora da Unifesp e coordenador do Departamento de Cosmiatria da Sociedade Brasileira de Dermatologia, (SBD). “Além disso, há fragrâncias e cores que são químicas. É falsa a ideia de serem 100% naturais.” A imprecisão nas formulações, insista-se, não significa risco à saúde. “Mas não é porque é vegano que é seguro”, afirma Renato Hikawa, médico coordenador do Ambulatório de Dermatite de Contato da Unifesp. “Veneno de cobra também é natural”, compara. Atentas, as empresas intuem que sustentariam críticas por vender gato por lebre (embora a grande maioria não faça isso), mas precisam a todo custo evitar problemas. “O que nos preocupa, acima de tudo, é a saúde dos consumidores”, diz Patrícia Lima, CEO da Simple Organic. “É o conjunto de ativos que vai dar resultado”, ecoa Carine Dal Pizzol, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Sallve.
Para além da postura em relação às demandas da sociedade — ser vegano ou não ser, eis a questão —, uma pergunta não quer calar: são eficazes? Esses produtos não alcançam camadas mais profundas da pele como os tradicionais, munidos de tecnologias avançadas e anos de estudos científicos. Entende-se, porque levantamentos clínicos robustos custam caro, embora as companhias digam ter interesse em exibir relatórios consistentes para eliminar as sombras. “O que mais queremos é comprovar eficácia, de modo a afastar os receios em torno da beleza limpa”, insiste Patrícia Lima, da Simple Organic. É preocupação louvável — convém, portanto, como em tudo na civilização, não manter uma postura politicamente correta apenas porque pega bem em sociedade. Nem todo verde — ou vegano — é o que parece ser.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788