A estatística arde como chama: em agosto, o Brasil registrou 68 635 focos de queimadas, de acordo com levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foi o maior número para o mês desde 2010 e o quinto pior da série histórica, iniciada em 1998. Em relação a 2023, que registrou 28 056 pontos de fogo nesta época do ano, o aumento foi de 144%. É triste e constrangedor. Levando-se em conta os dados dos oito primeiros meses de 2024, a quantidade de labaredas é a maior em catorze anos. A inglória liderança é da Amazônia, com mais de 63 000 episódios pirotécnicos. Nessa imensidão trágica e vergonhosa, porém, emerge um caminho de esperança: o crescimento de iniciativas que, na contramão da negligência e do crime, tratam o bioma com respeito e ensaiam levá-lo, de alguma forma, para dentro dos lares brasileiros.
É o caso do recém-inaugurado Ateliê da Floresta, projeto da Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri, no Acre, cujo plano é transformar resíduos de madeira de árvores caídas em peças de decoração e móveis, criando oportunidades de negócios, sem desmatar, como era desejo do seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988. “É um sonho realizado, a prova de ser possível gerar renda para as famílias e manter a floresta de pé”, disse a VEJA o líder extrativista Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico. Dali, saem mesas, cadeiras e utensílios de cozinha feitos por membros de dezoito famílias e que já chamam a atenção de galerias de Manaus e São Paulo pelo design genuinamente rústico e pela durabilidade, características requisitadas pelos humores dos dias de hoje. “Além da conservação ambiental, projetos com essa estrutura contribuem para um futuro mais sustentável na Amazônia”, diz Neluce Soares, bióloga e coordenadora do Legado Integrado da Região Amazônica (Lira), programa do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).
Iniciativas semelhantes brotam com velocidade, ao iluminar a saudável tendência. A Movelaria Comunitária Sustentável, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Igapó-Açú, por exemplo, envolve jovens na lida com madeira manejada. A consciência ambiental e o apreço por móveis reciclados também pautam trabalhos de profissionais renomados como Letícia Granero, que levou o conceito ao seu espaço na edição deste ano da CASACOR, em São Paulo, e Zanini de Zanine e Leo Lattavo, que, com a BVRio, criaram a Design & Madeira Sustentável para compartilhar conhecimentos e técnicas de desenho com movelarias comunitárias na Amazônia.
Vale ressaltar que, além de promover o desenvolvimento econômico, trata-se de combater o desmatamento e o uso de mão de obra escrava decorrentes da extração ilegal de madeira, ao apartar atravessadores. É caminho que ganha o mundo, no casamento da estética com o respeito. Basta ver o cipoal de objetos ecológicos destacados na Semana de Design de Milão por meio de grifes como a italiana Arper e a espanhola Patricia Urquiola.
A estética que brota de grupos amazônicos, no avesso da contravenção ambiental, remete ao belo trabalho do arquiteto José Zanine Caldas (1919-2001), cujas obras uniam a forma e a função como manifesto. No fim dos anos 1960, a partir de Nova Viçosa, na Bahia, ele criou um mobiliário imaginado da lida com troncos tombados e torrados, matéria-prima abandonada e desrespeitada, a que chamou de Móveis Denúncia. Correram o mundo, foram parar em museus com o MoMA, de Nova York, como a namoradeira talhada em uma única peça bruta, e ajudaram a renovar o olhar para um pedaço do planeta que exige atenção. As recentes iniciativas, alimentadas e geridas por comunidades locais, recuperam o estandarte — servem a um só tempo de alerta e sinônimo de elegância, ao oferecer o conforto de permanente mãos dadas com o zelo ambiental.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909