Os magníficos mármores esculpidos na Grécia antiga para representar a nudez têm características muito bem definidas: curvas sensuais nas figuras femininas, músculos em evidência e apologia da força bruta nos homens. O padrão se solidificou ao longo dos séculos e culminou nos tempos modernos nos papéis atribuídos aos dois sexos pelo cinema e pela propaganda — de um lado a mulher-objeto à Marilyn Monroe, de cabecinha oca e corpo escultural, e de outro o machão viril.
Aos poucos, porém, os velhos paradigmas vão se modificando e tomando nova forma. Enquanto o feminismo não perde a chance de exigir respeito e dignidade no tratamento da figura da mulher, os homens se sentem cada vez mais livres para mostrar e valorizar seu corpo — aí incluído o bumbum, até pouco tempo atrás cantado em verso e prosa exclusivamente no feminino. “A onda feminista faz com que as pessoas reflitam sobre quanto o machismo afeta os homens e poda a liberdade deles”, diz Ana Boscatti, socióloga da UFSC.
Indícios da aurora do homem-objeto assumido e orgulhoso disso estão por todo lugar e sua difusão neste momento é, em parte, atribuída à pandemia (sempre ela). Depois de passar um período trancafiadas em casa, de moletom e chinelos, as pessoas sentem necessidade de exibir o corpo — e os homens, em geral menos afeitos a esse tipo de ostentação, aderiram com gosto. Simbolizando a tendência, Damiano David, vocalista da banda italiana Måneskin, subiu ao palco do Video Music Awards da MTV com as tatuagens do derrière à vista, enquanto o rapper Lil Nas X, ligadíssimo em moda, assessorava seu traje esquisito com torso inteiro de fora. No Brasil, os atores José Loreto, 38 anos, e Jesuíta Barbosa, 31, no ar em Pantanal, puseram as redes em polvorosa em março ao postar uma foto em um momento de folga em que aparecem lado a lado nus, de costas, bumbuns à mostra no cenário pantaneiro. “Abundância”, escreveu na legenda Loreto, que posteriormente louvou poder “ser frágil e tirar as amarras dessa minha criação machista” e celebrou o fato de serem os homens agora que mais se destacam nas cenas sensuais da novela.
O mesmo Loreto, que é diabético, repetiria a dose em vídeo mostrando um teste de glicemia aplicado no posterior. O também ator Rodrigo Simas, 30 anos, fez sucesso ao se deixar fotografar muito à vontade, de costas, em uma praia paradisíaca onde passava as férias com a mulher, Agatha Moreira, 30. O cantor Justin Bieber, 28, é outro integrante do bonde dos exibidos: vira e mexe posta fotos de bumbum de fora. A pose cada vez mais comum rompe com o arraigado preconceito de associar nádegas a homossexualidade. “A masculinidade é um conceito frágil e os homens se sentem feridos quando são julgados”, explica Bernardo Conde, antropólogo da PUC-Rio.
Nesse sentido, a multiplicação dos bumbuns masculinos no Instagram e em outras redes, sem conotação sexual e pelo simples fato de gostar de se mostrar, é uma mudança e tanto. São os homens tomando o controle da exposição do próprio corpo em troca de olhares apreciativos, uma prática que sex symbols como a americana Marilyn Monroe e a francesa Brigitte Bardot elevaram à condição de arte nos tempos em que objetificar a mulher era esperado e aceitável. O lutador carioca Tomás Cintra, 24 anos, conta que custou a perceber que seu corpo despertava admiração — e gostou da ideia. “Aprecio o formato dos meus glúteos e treino para que continuem bonitos. Minhas parceiras adoram”, diz Cintra, entre uma pose e outra.
De fato, é comum homens passarem horas na academia trabalhando os membros superiores e negligenciando a curva da retaguarda — o que, em matéria de sedução, é um equívoco. “O bumbum está entre os atributos masculinos que mais atraem as mulheres. É comum elas associarem bunda bonita a boa performance sexual”, afirma a psicóloga e sexóloga Carla Cecarello. Indiferente a julgamentos, o professor baiano Amarildo Lima, 26 anos, posta com orgulho nas redes sociais fotos em que o bumbum é protagonista. “É a parte do meu corpo de que mais gosto. Exibir em meu perfil é uma forma de elevar minha autoestima”, reconhece. Segundo a antropóloga Mirian Goldenberg, esse tipo de atitude se encaixa em uma corrente mundial de libertação masculina, que ganhou força nos últimos tempos. “Não há razão plausível, nos dias de hoje, para continuar ligando masculinidade ao tamanho do bíceps ou definição do abdome. Os homens podem e devem ser vaidosos e sexy da maneira que bem entenderem”, diz. Inclusive — ou principalmente — tirando selfies de bumbum de fora e postando à vontade.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805