A ficção atesta que a história e seus temores tendem a se repetir. Abaixo, confira cinco clássicos da literatura, que vão desde o humor até distopias, passando por pandemias até instabilidade e descrença política, temas que refletem anseios dos dias atuais.
Decamerão, de Giovanni Boccaccio
Clássico italiano feito em meados de 1350, Decamerão segue um grupo de 7 mulheres e 3 homens que, para fugir da peste negra, se abrigam em uma vila isolada em Florença. Ao longo de dez dias, cada um dos integrantes narra contos de amor, do erótico ao trágico, com sagacidade, humor e lições de vida. Mais do que uma criação ficcional de valor literário, o romance é um documento histórico que descreve a doença em minúcias, desde suas manifestações e evolução até os sintomas e a descrença em uma medicina ineficaz. Decamerão é, além de tudo, um marco na literatura mundial. Por meio de uma narrativa extremamente sensual e realista para os padrões na época, a obra representou uma ruptura com o moralismo medieval – o que provocou todo tipo de censura por parte das autoridades religiosas.
Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto
Considerado o maior representante do pré-modernismo brasileiro, O Triste Fim de Policarpo Quaresma segue o anti-herói quixotesco homenageado no título. De bom coração, mas com ares de tresloucado, major Policarpo é um ultranacionalista interessado em livros de viagem e manuais de agricultura, além de ser um defensor obstinado da língua tupi – motivos de desdém e ironia para muitos. O protagonista, sobretudo, é um patriota que quer defender sua nação a todo custo, ferrenhamente engajado em projetos para fazer do Brasil uma potência mundial, ideias estas que embasam as três partes do livro e que logo criam um conflito entre a realidade e o idealizado quando caem por terra. Frustrado, o ufanista conclui que a culpa de suas desilusões é uma só: os políticos. E a única solução é uma urgente reforma no poder público do país. Soa familiar?
Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro
“O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” A frase que abre o romance histórico Viva o Povo Brasileiro, escrito em 1984 por João Ubaldo Ribeiro, sintetiza a essência do enredo: existem muitas versões da verdade dentro de um acontecimento. Com essa reflexão, o livro conta a trajetória do Brasil de forma crítica, e até satírica, ao retratar momentos cruciais da construção da identidade nacional, com base em situações e comportamentos espelhados da sociedade, como a crueldade com escravos, a mentalidade “casa-grande e senzala”, a devassidão e o “jeitinho brasileiro”. O romance, apesar de baseado em fatos reais, é composto por personagens ficcionais, cujos acontecimentos de vida se entrelaçam com episódios do Brasil, em uma janela temporal de quase 400 anos. Em cada momento da narrativa um se destaca, dando insumo para que uma outra versão da história seja contada. Boa pedida para entender as origens do tal “Brasil que deu certo”, em uma sociedade que engatinhava no conceito de pós-verdade.
Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin
No universo criado por Le Guin, existem dois planetas gêmeos com sistemas político-econômicos opostos: enquanto um aposta no capitalismo e é palco de guerras entre seus estados-nação, o outro propõe uma junção de anarquismo com comunismo e é completamente isolado. Urras, o planeta capitalista, outrora abrigara todos os seres humanos do universo, até que, dada uma rebelião anarquista, viu boa parte de seus habitantes migrarem para a Lua. Literalmente para a Lua: Anarres, o segundo planeta, nada mais é que um satélite comunista, anarquista e autossuficiente de Urras. Ali, não existem propriedades, tampouco os conceitos de dinheiro, vendas, hierarquias e até qualquer tipo de dieta que não seja a vegana (por lá não existem animais). Um físico da ala comunista questiona o sistema em que vive, e propõe uma junção de ideias que pode revolucionar a relação entre os dois pólos. Com alusões claras à Guerra Fria, o livro escrito em 1976 é um prato cheio para refletir não só sobre sistemas políticos – uma discussão cada vez mais avivada no Brasil de 2020 –, mas também sobre liberdade, poder, existencialismo, desigualdade e até mesmo papéis de gênero.
O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick
O que teria acontecido caso o desfecho da Segunda Guerra Mundial tivesse sido outro? Philip K. Dick sugere tal cenário na distopia O Homem do Castelo Alto, adaptada em 2015 para a série de TV do Amazon Prime Video. Na trama, os nazistas vencem o conflito e instauram uma ditadura que divide o mundo entre as duas potências vitoriosas: o Reich alemão e o império japonês. Com o planeta à sombra da suástica, negros são escravizados, os poucos judeus que sobreviveram ao genocídio vivem sob identidades falsas e os Estados Unidos, repartido em três, têm sua identidade cultural massacrada. É na fatia japonesa do país que a história se passa, seguindo de perto cinco personagens que, apesar de muito diferentes, dividem dois pontos em comum. Um deles é o uso-e-abuso de um oráculo chinês chamado I Ching, um grande conselheiro para tomar decisões, e o outro é o fascínio por um livro ficcional proibido, “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que conta de um mundo em que Hitler perde a Segunda Guerra. É nessa brincadeira de inserir uma realidade alternativa dentro de outra que Dick questiona o que é, de fato, a realidade pós-guerra – uma interrogação ainda mais válida nos dias de hoje, dada a ascensão de movimentos e partidos políticos que, mundo afora, flertam com a extrema-direita.