Deitado em leito suntuoso, um rico senhor de escravos está em seus últimos suspiros. Bajuladores preenchem a sala onde ele se encontra. Antes de partir, o moribundo ouve palavras que o descrevem quase como um anjo. Mas, num rompante de delírio, o senhor de escravos começa a recapitular sua vida. Em confissão inconsciente, descreve os horrores cometidos contra os negros que mantinha cativos. As descrições, livres de remorso, são de revirar o estômago. Em vida, o homem ordenou 500 chibatadas a uma escrava grávida e mandou enforcar quatro outros, que tiveram a espinha dorsal quase quebrada ao meio. Escrito por João da Cruz e Sousa (1861-1898), filho de escravos alforriados ligado à luta abolicionista, o tenebroso conto Consciência Tranquila não é muito lembrado na vasta produção do autor, mais conhecido como um virtuose da poesia simbolista. A obra prova, porém, que Cruz e Sousa explorou um gênero tido como raro no Brasil do século XIX: a literatura de horror.
Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1839-1899]
Ele não estava sozinho, nem de longe, em seu mergulho nas sombras: a instigante antologia Tênebra mostra que as histórias góticas não eram exclusivas da Europa no período. Assim como em países como Inglaterra, elas marcaram presença em terras brasileiras. O maior e mais conhecido exemplar do horror nacional, o livro Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, não foi um caso isolado. Além da história violenta de Cruz e Sousa, a publicação reúne mais outras 26 narrativas curtas de autores nativos variados, publicadas entre 1839 e 1899.
Na história oficial de nossa literatura, consta que o período foi marcado pelo romantismo e realismo — mas escondeu, na verdade, um baú repleto de fantasmas, bruxas, lendas escabrosas e crimes sanguinolentos do qual pouco se sabia. A garimpagem foi realizada ao longo de quinze anos de estudo pelos pesquisadores Júlio França e Oscar Nestarez, organizadores da coletânea. “No começo, foi quase um tiro no escuro. Encontramos, porém, muitas obras que se encaixavam na chamada literatura de medo”, conta França. Inicialmente, o projeto Tênebra surgiu como um site, que foi ao ar no Halloween de 2021. Em seguida, a ideia se transformou em livro.
Entre os autores está o mestre Machado de Assis. Em seu conto Sem Olhos, o casal Vasconcelos recebe quatro amigos para tomar um chá num dia qualquer. Entre conversas corriqueiras, o assunto desemboca em aparições sobrenaturais. Parte dos presentes jura que elas são uma baboseira infantil. Mas um deles, o desembargador Cruz, tira da manga um relato que diz ser verídico: quando jovem, encontrou um homem louco e os dois viram a presença fantasmagórica de uma mulher que teve os olhos arrancados pelo marido ciumento.
Não apenas Machado, mas outros grandes nomes da literatura brasileira abraçaram o horror. Em O Crime de Otávio, Olavo Bilac narra uma traição conjugal seguida de assassinato. Aluísio Azevedo conta as desventuras de um frade pecador em O Impenitente. Mesmo dominada por homens, a coletânea resgata mulheres que também tinham maestria para conduzir leitores aos sustos, caso de Júlia Lopes de Almeida com seu A Nevrose da Cor. Issira, sedutora princesa do Egito antigo, é obcecada pela cor vermelha. A paixão é tanta que passa a beber sangue de escravos, numa das primeiras histórias com elementos vampirescos de que se tem registro no Brasil.
Na época em que foram publicados, os contos passaram despercebidos — e talvez não por mero acaso. Segundo França e Nestarez, o ocaso da nossa literatura de horror ocorreu por uma série de fatores. Além de ser mais custoso incentivar a produção de obras nacionais do que traduzir livros estrangeiros, a crítica e a historiografia literária preferiam as tramas focadas na construção de uma identidade nacional positiva — como as obras indianistas de José de Alencar (1829-1877) —, que falassem sobre política e costumes brasileiros. Apesar das tentativas de apagamento, as narrativas que não tinham pudor de lidar com o medo, um dos instintos mais primitivos do ser humano, sempre existiram no Brasil. Verdadeiras sobreviventes literárias, as pérolas do gótico tropical enfim saem do limbo.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825
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