Aos 18 anos, quando já despontava como pianista e compositora, Clarice Assad enfrentou uma reação emblemática de machismo. À época, seu pai, o conceituado violonista Sérgio Assad, apresentou uma fita demo com as criações autorais da filha para um conhecido produtor musical. A resposta que ele recebeu não poderia ter sido mais infeliz: “Ah, é legal, mas é melhor ela se casar com um cara rico”. A história é relembrada entre risos pela pianista, mas o caso deixou marcas profundas. “Eu me tornei muito mais resiliente às críticas”, conta ela, hoje aos 43 anos. O fato é que o produtor musical em questão não poderia estar mais errado. Ao lado de artistas do porte de Astrud Gilberto, Bidu Sayão, Eliane Elias e Thalma de Freitas, Clarice entrou neste ano no exclusivíssimo rol de brasileiras indicadas ao Grammy, a mais importante premiação musical do mundo. O álbum clássico contemporâneo Archetypes, gravado junto com o pai e o quarteto americano de percussão Third Coast Percussion, foi indicado em três categorias. Os vencedores serão conhecidos em 3 de abril, em Las Vegas — na ocasião, além de Clarice e Sérgio, o Brasil também será representado pela pianista Eliane Elias.
Violão canção: diálogos entre o violão solo e a canção popular
Nascida no Rio, mas oriunda de uma família de classe média de Mococa, no interior paulista, Clarice vem de um ambiente de tradição musical. Seu avô, Jorge, tocava bandolim. O pai e os tios cresceram tocando violão. Nos anos 60, Sérgio, ao lado do irmão Odair, formou o duo Assad, hoje um dos mais respeitados do mundo, com trabalhos ao lado de músicos como Yo-Yo Ma e Paquito D’Rivera. A tia, a violonista Badi Assad, ganhou notoriedade por suas criativas interpretações de clássicos populares ao violão. “Quando Clarice tinha 4 anos, notei que ela era capaz de improvisar sobre mudanças de acordes. Algo improvável para uma criança daquela idade”, diz o pai — que, por causa disso, preferiu incentivá-la a aprender piano, instrumento com mais possibilidades de criação que o violão.
Como compositora de música clássica que trafega também pelo jazz e pela world music, Clarice invadiu um clubinho historicamente pouco aberto às mulheres. Agora adulta e consagrada, tem conseguido se impor acima do sexismo. Recentemente, ela recebeu uma encomenda da The Philharmonia Orchestra, de Londres, para criar uma sinfonia com o tema das lendas brasileiras, que será gravada em maio. Além disso, outras duas óperas de sua autoria deverão estrear ainda neste ano em Nova York.
Embora pai e filha estejam disputando com grandes artistas, como Yo-Yo Ma e o pianista e vencedor do Oscar Jon Batiste, o álbum Archetypes, lançado em maio de 2021, não é um concorrente a se desprezar. Cada uma das doze composições é inspirada em um dos famosos “arquétipos” do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). A inspiração é papo cabeça, mas musicalmente revela-se um achado que dá ao álbum notável unidade sonora. A percussão do quarteto Third Coast, vencedor do Grammy em 2016, acrescenta novos tons e texturas, que seriam impossíveis de produzir no violão ou no piano.
Assistir à dupla familiar ao vivo é testemunhar uma comunicação quase telepática. Em uma apresentação recente nos Estados Unidos, os dois somente se olharam uma vez — mesmo assim, a sintonia era estonteante. Clarice, aliás, vive desde 1997 em Chicago, e é casada há doze anos com a também brasileira Andrea, com quem tem uma filha de 1 ano. Que a tradição musical dos Assad prossiga longa e prolífica.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774
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