Cruzar os portões dos grandes museus da Europa é empreender uma viagem no tempo e no espaço. Neles o visitante é capaz de examinar as divindades e o cotidiano da Grécia antiga e do Egito dos faraós, deparar com a cultura da América pré-colombiana e conhecer os alicerces dos grandes reinos tribais que dominavam a África. Passado o deslumbramento inicial diante de tantos tesouros acondicionados em ambiente controlado, em prédios bem cuidados e bem guardados, abertos a pessoas do mundo todo, levanta-se a pergunta: essas peças não deveriam estar expostas em seus locais de origem? A recorrente questão voltou ao debate depois que o presidente francês Emmanuel Macron anunciou, em 2017, que encomendaria um estudo para avaliar se era ou não recomendável devolver artefatos obtidos durante o período de colonização da África, entre eles 26 peças removidas do palácio do reino de Daomé (atual Benim), expostas no magnífico museu de arte étnica Quai Branly, em Paris. Os especialistas entenderam que sim, a devolução deveria ser feita. Passados três anos, para pesar dos africanos que há décadas querem a repatriação, os bronzes continuam na França.
Além de recomendar a volta desse acervo a seu país de origem, os historiadores e museólogos encarregados do levantamento também propuseram uma reflexão sobre o papel dos museus na sociedade e os benefícios da universalização de sua utilidade como uma espécie de enciclopédia física da humanidade. “Os objetos poderiam fazer parte de um museu em Dacar, por exemplo, e a partir de lá circular pela Europa. Os países africanos esperam a restituição desde a década de 60. Não dá mais para adiar”, diz Bénédicte Savoy, professora de história da arte na Universidade de Berlim e uma das autoras do estudo.
A briga é antiga, envolve responsabilidades e ressentimentos nas relações entre colonizados e colonizadores e gira em torno de exemplares de civilizações passadas bem mais conhecidos do que a coleção do Quai Branly. No imponente Museu Britânico, em Londres, a Pedra de Roseta, monólito onde está cravado um decreto da época do faraó Ptolomeu V em três versões, uma delas o grego antigo — o que possibilitou a decodificação da escrita por hieróglifos —, é reivindicada há décadas pelo Egito. O mesmo país quer de volta o Zodíaco de Dendera, baixo-relevo removido de um templo durante incursão militar napoleônica. A Grécia, por sua vez, exige a devolução das Frisas do Partenon, relevos em mármore que retratam cenas da mitologia e da sociedade gregas do século IV a.C. originalmente afixadas no templo em Atenas.
Os países de onde esses e outros tesouros saíram ressaltaram que a maioria foi sumariamente “confiscada” em invasões das potências europeias ou simplesmente surrupiada na calada da noite. As peças em disputa no Quai Branly foram, digamos, conquistadas quando tropas francesas se apoderaram de tudo o que encontraram na capital destruída do reino de Daomé — até as portas do palácio foram levadas. Outro caso conhecido de tentativa de repatriação envolve os famosos Bronzes de Benin — que, esclareça-se logo, não são de bronze (a maioria é latão) — e não têm nada a ver com o atual Benim, já que o reino antigo deste nome se situava no que é hoje a Nigéria. Mais de 1 000 artefatos, arrebatados por uma expedição militar britânica, foram parar em diversos museus europeus, principalmente no Museu Britânico. Um século depois, uma comissão nigeriana foi à Europa negociar a devolução, sem grande sucesso: até agora, os poucos objetos repatriados foram comprados pela Nigéria. “A independência justifica o repatriamento dos artefatos. É doloroso não se fazer justiça”, diz Offiong Timothy Abia, professor de história da Universidade nigeriana de Calabar.
Não há legislação internacional para arbitrar esse tipo de conflito. Reino Unido e Alemanha aprovaram leis locais que proíbem a devolução, alegando que, se saírem de onde estão, as peças correm o risco de ser destruídas por falta de cuidados. A justificativa tem lá seu fundo de verdade. Quando Thomas Bruce, lorde de Elgin, contrabandeou para Londres as Frisas do Partenon — e imortalizou seu nome da ala do Museu Britânico que abriga os Mármores de Elgin —, no fim do século XIX, o Império Turco-Otomano ocupava a Grécia e não nutria grande apreço pelas ruínas da Acrópole. O Neues Museum, em Berlim, por sua vez, alega que qualquer tipo de movimentação, mesmo a mais cuidadosa, pode danificar o célebre busto da rainha Nefertiti, descoberto no Egito, em 1912, por uma expedição arqueológica alemã que o levou embora e o manteve escondido por doze anos. Por mais que os países pilhados exijam solução urgente, essa história, tal qual a exibida dentro dos museus, se move a passos lentos.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702