Em 1965, um ano antes de sua morte, o visionário do entretenimento Walt Disney anunciou um ambicioso plano batizado de “Projeto Flórida”: um parque de diversões no estado do sudeste dos Estados Unidos, onde o sol predomina e o turismo é intenso. Expansão da Disneyland, primeiro parque do grupo, na Califórnia — que desde 1955 se vendia como “o lugar mais feliz do mundo” —, o empreendimento vinha em boa hora: os americanos careciam de escapismo. Polarizado, o país se dividia sobre a deflagração da guerra contra o Vietnã — enquanto testemunhava em seu território o horror da segregação dos negros, que ainda brigavam por direitos civis. Quando o complexo Walt Disney World abriu, em 1971, na cidade de Orlando, a promessa era de união: “Um reino mágico onde pessoas de todas as idades podem se divertir juntas”, anunciou Roy O. Disney, irmão de Walt. Cinco décadas depois, o lema agora é posto em xeque: o gigante do entretenimento mundial caiu na malha fina da nova polarização política, sendo atacado pela direita e pela esquerda — enquanto seu Reino Mágico na Flórida virou uma trincheira da discórdia.
A Portrait of Walt Disney World
Cobrada a abraçar pautas progressistas, a Disney vem inserindo paulatinamente inovações em seus filmes: faz pouco tempo que príncipes deixaram de ser os salvadores de princesas em perigo — enquanto personagens LGBTQIA+ estrearam discretamente em cena. O primeiro protagonista abertamente gay numa animação do estúdio só foi apresentado em 2022, em Mundo Estranho. No mesmo ano, Lightyear, da Pixar (uma das marcas sob o guarda-chuva Disney, ao lado de Marvel e Star Wars), entregou seu primeiro beijo gay. A rápida cena entre duas mulheres chegou a ser autocensurada pela Disney, mas entrou no corte final por pressão interna — e virou uma resposta aos excessos do governador da Flórida, Ron DeSantis.
Ultraconservador, o político chamado de “novo Donald Trump” mira ser o próximo candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Para tanto, investe na “guerra cultural” contra políticas liberais — e se tornou a nêmesis da Disney ao eleger a empresa como alvo de sua marquetagem radical. Encurralada pelos funcionários, a Disney interrompeu doações a DeSantis na esteira da infame lei criada por ele: apelidada de “Don’t Say Gay” (não diga gay, em português), a medida criminaliza escolas que tratem temas sobre questões de gênero para crianças. Em represália ao corte, o governador iniciou um bombardeio ao resort que emprega 75 000 pessoas e atrai 50 milhões de turistas anualmente.
The Story of Disney: 100 Years of Wonder
No momento, DeSantis empreende uma cruzada para limitar o poder da Disney sobre os 10 000 hectares do complexo. Seu governo retomou o controle do conselho que aprova questões fiscais e projetos de expansão dos parques. Na quarta-feira 26, fez sua investida mais audaciosa: seus representantes no conselho anularam decretos que garantiam a autonomia administrativa da empresa. Em resposta, a Disney entrou com um processo na Justiça contra DeSantis e seus indicados, denunciando-os por promover uma “campanha direcionada de retaliação política”.
Walt Disney: O triunfo da imaginação americana
Embora acusada de ostentar privilégios, a Disney não só paga impostos na casa do bilhão como banca a administração estrutural da região — e os gastos recairiam sobre a Flórida. Bob Iger, CEO da companhia, chamou o governador de anticapitalista, e com razão: DeSantis dificultou uma expansão do parque com investimento de 17 bilhões de dólares e criação de milhares de empregos. A disputa está longe do fim, mas a Disney é resiliente: no ano passado, sua divisão de parques cresceu 73%, batendo 28,7 bilhões de dólares. O Reino Mágico está sob ataque, mas tem munição para reagir.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2023, edição nº 2839
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