Quem visitou o Instagram do inglês Damien Hirst nas últimas semanas presenciou uma experiência incendiária: aos 57 anos, o artista mais rico do Reino Unido ateou fogo, por livre e espontânea vontade, em 1 000 quadros pintados por ele em 2016, estimados em 10 milhões de dólares. Com transmissão ao vivo na internet, a pirotecnia faz parte do projeto The Currency, lançado por Hirst no ano passado como um experimento sobre o mercado da arte e os NFTs — obras digitais certificadas por uma espécie de “código de barras” exclusivo. Após pintar 10 000 peças com seu pontilhismo colorido tradicional, ele transformou cada uma delas em um NFT vendido, inicialmente, por 2 000 dólares. Quem comprou recebeu a obra digital e teve um ano para decidir mantê-la ou trocá-la pelo seu correspondente físico. No total, 4 851 pessoas, cerca de 48,5% dos compradores, escolheram a versão digital, condenando as peças físicas a arder na fogueira performática de Hirst, que vai até o dia 30 de outubro. “Dizem que estou queimando milhões de dólares em arte, mas estou apenas concluindo a transformação”, explicou o artista, sempre sarcástico, nas redes sociais.
Hirst não está sozinho na ideia de que queimar uma obra de arte é uma forma performática de eternizá-la. Nos últimos meses, a junção dos NFTs com o poder destruidor do fogo tem aquecido discussões sobre os limites da tecnologia e o valor da própria arte. Isso porque Hirst, um artista ainda vivo, pode escolher queimar seu trabalho em um projeto megalomaníaco de apelo midiático, fazendo da queima um espetáculo por si só. Mas a questão é que artistas até então tidos como intocáveis e com valor inestimável se tornaram vítimas da nova onda.
Exemplo mais recente dessa forma de heresia moderna aconteceu em julho no México, quando o empresário Martin Mobarak organizou uma festa pomposa (e brega) para queimar o que afirma ser um desenho original de Frida Khalo feito em 1944. Sacrificada dentro de uma taça de martíni e transformada em 10 000 NFTs, a gravura Fantasmones Siniestros teria sido parte de um dos diários da artista e é estimada em 10 milhões de dólares. Com a repercussão, o Instituto de Belas Artes e Literatura (Inbal) do México anunciou que está investigando o caso, já que as obras de Frida são consideradas tesouro nacional e destruir uma delas, se comprovada a veracidade da peça, seria incorrer em um crime de esfera federal.
Não menos assustadora foi a combustão da gravura Fumeur V, trabalho datado de 1964 do cubista espanhol Pablo Picasso. Queimada em 2021 por um grupo de artistas anônimos dos Estados Unidos, a obra foi renomeada na versão digital como O Picasso Queimado — e hoje está exposta em uma galeria virtual de origem brasileira chamada Xepa.World. Na época, a ideia era que a obra “vivesse para sempre” no meio digital. Mas a queima da peça física provocou controvérsia, já que se tratava do original de um dos pintores mais célebres da história da arte e a “transferência” e “eternização” dela no universo digital, na prática, implicam a destruição da obra real. A título de consolo, a gravura sobrevive — só que agora todinha tostada.
Uma das ironias da tendência é ver arte de verdade ser destruída em prol dos NFTs — formato badalado cujo valor de mercado despencou de 23 bilhões de dólares em dezembro de 2021 para 2,3 bilhões na última cotação da agência de monitoramento Coinmarketcap. Para além desse detalhe, a destruição de obras como forma de espetáculo tem avançado para o terreno moral. Recentemente, o canal inglês Channel 4 anunciou um programa que permitirá que a audiência decida se o apresentador Jimmy Carr deve ou não acabar com obras de figuras duvidosas — para dizer o mínimo, já que o acervo tem até uma pintura de Adolf Hitler. O programa também traz em sua lista obras de Rolf Harris, condenado por pedofilia, do escultor Eric Gill, que abusava das suas filhas, e até do próprio Picasso, notório algoz de mulheres. As celeumas da arte nunca foram tão quentes.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812
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