Por séculos, a região conhecida como Mada’in Salih foi tida como amaldiçoada pela população de seu próprio país, a Arábia Saudita. Naquele território inóspito no meio do deserto, afinal, a civilização ancestral de Thamud teve final trágico — segundo o Corão, foi punida por Alá pelo culto de deuses pagãos. Não ajudou muito o fato de que em seguida o lugar foi habitado por outro povo politeísta, os nabateus, que adoravam divindades femininas e erigiram por lá uma de suas maiores cidades, a esplendorosa Hegra (a outra é Petra, na Jordânia). A localidade é belíssima, cheia de história e mistérios — mas, de forma espantosa, sua abertura a arqueólogos e turistas só ocorreu após o ano 2000, quando a ortodoxa censura religiosa no país começou a ceder. Desde então, a guinada no status da antiga terra proibida foi vertiginosa. Ela passou a ser chamada pelo nome de outra cidadezinha local, AlUla, e se converteu no bastião de um projeto que faz brilhar os olhos da família real saudita: a transformação do país em um polo de cultura, turismo e ostentação tecnológica capaz de mudar a percepção internacional sobre uma das sociedades mais fechadas do mundo islâmico.
O primeiro trunfo desse plano ambicioso acaba de chegar à terceira edição. A bienal a céu aberto Desert X nasceu na Califórnia, mas encontrou seu cenário perfeito em AlUla, onde acontece desde 2020. A versão atual se iniciou há um mês, com o brasileiro Marcello Dantas entre os curadores — e já é sucesso de crítica e de repercussão no circuito global das artes. Batizada de In the Presence of Absence (Na Presença da Ausência), ela impressiona pela escala e distribuição desconcertante das obras de quinze artistas na paisagem formada por areia e montanhas de pedra. No roteiro de quase 7 quilômetros feito para se percorrer a pé (os menos corajosos podem realizar o percurso num carrinho de golfe), depara-se com criações como The Dot (O Ponto), enigmática esfera metálica que o escultor saudita Faisal Samra colocou no fundo de um vale. Ou a instalação Reveries (Devaneios), cujas três torres imponentes — elaboradas pelos libaneses Rana Haddad e Pascal Hachem — são compostas de vasos de barro. “Caminhar pela exposição faz os humanos se sentirem pequenos perante a imensidão. Parece que você está em Marte, diante de resquícios deixados por extraterrestres”, diz o curador Dantas.
O acervo da Desert X sintetiza o espírito do investimento artístico empreendido pelo governo local. Enquanto vizinhos como Dubai e Catar vêm apostando em museus urbanos, a Arábia Saudita quer usar como trunfo o visual de um território caracterizado pela amplitude e pelo vazio. Encontrou na arte contemporânea de grandes proporções — a land art — um modo de valorizar essa vocação. Nos próximos anos, AlUla vai ganhar ainda um museu de obras contemporâneas e um parque de exposições que une natureza e instalações, nos moldes do brasileiro Inhotim. “Estamos trabalhando para construir o próximo capítulo da história da arte”, afirmou a VEJA Nora Aldabal, gestora cultural de AlUla.
Essa não é a única frente na batalha da Arábia Saudita para criar seu soft power — a marca cultural que faz bem à imagem e aos negócios de qualquer nação. Dono de um quinto das reservas de petróleo do planeta, o país vem despendendo bilhões de dólares também em iniciativas audaciosas no esporte, como um campeonato com estrelas internacionais do futebol como Neymar, e os Jogos Asiáticos de Inverno de 2029 — nos quais promete até fazer nevar no deserto. Tudo isso, na verdade, é fichinha perto da megalômana The Line, futura cidade-estufa na forma de uma linha de 170 quilômetros, com previsão de 10 milhões de habitantes servidos por trem-bala e jardins luxuriantes.
Além de espantar a fama de sociedade opressiva, os sauditas visam estimular o turismo. Mas não para qualquer bolso: visitar a Desert X ou desfrutar da imensidão são programas de luxo. Em breve, será aberto em AlUla um resort do arquiteto francês Jean Nouvel que ilustra isso. O Sharaan é esculpido dentro de uma montanha, dando ao hóspede a sensação de estar nas cavernas dos beduínos. As diárias não sairão por menos de 6 000 dólares. Não há maldição que resista às novas (e caras) miragens no deserto.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882