Em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, o diretor Karim Aïnouz conta a história de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) no Rio de Janeiro dos anos 1950. A primeira quer ser pianista, mas acaba num casamento com Antenor (Gregorio Duvivier). Guida apaixona-se por um marinheiro, vai embora com ele para a Grécia e volta ao Brasil grávida, sendo expulsa de casa pelo pai. As irmãs, sempre cúmplices, separam-se e tentam se reencontrar. É uma história das violências, pequenas e grandes, vividas pelas mulheres, principalmente as daquela época pré-revolução sexual.
O longa, que está na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, é baseado num livro de Martha Batalha, apresentado ao diretor pelo produtor Rodrigo Teixeira. “Ele me conhece muito, porque temos feito filmes desde 2011. Foi muito bom ele ter se lembrado de mim”, diz. O cineasta cearense foi criado pela mãe e cercado da avó e suas tias-avós, que foram tema de um de seus primeiros curta-metragens, Seams (1993). Diretor de Madame Satã e O Céu de Suely, Karim Aïnouz falou a VEJA sobre seu novo filme:
Você cresceu cercado por mulheres que viveram a pré-revolução sexual. Como isso te inspirou? Uma coisa muito evidente no processo é que eu queria fazer um retrato de uma geração que está perto de ir embora. Na hora em que perdi minha mãe, vi quanto a gente não sabia da história dela. Este filme vem como vontade de mostrar que essas pessoas que estão aí, suas mães e suas avós, passaram por uma guerra. O livro começa nos anos 1950, mas continua, e eu queria muito me fixar nessa época porque tudo muda nos anos 1960. São várias Eurídices que a gente vê no mundo hoje. Era muito importante jogar luz sobre o que foi o passado dessas mulheres.
O filme é um melodrama. Por quê? É um gênero que eu adoro, que me comove muito, mas também que eu achava ser um dos caminhos do cinema brasileiro para a gente atingir um público maior. Há dois grandes gêneros na história do cinema brasileiro: o melodrama e a pornochanchada. Para mim foi uma estratégia de fazer um filme para essas mulheres que falasse com essas mulheres. E isso também me remete a uma volta às origens das novelas com que fui criado, das sessões da tarde com que fui criado. Ficava muito me perguntando, se a Janete Clair fosse viva hoje, como escreveria um filme? Porque tinha algo de muito contemporâneo no que ela fazia.
Como fazer um melodrama brasileiro? Tinha elementos importantes, por exemplo, não dava para ator entrar no set sem estar muito suado. Tem uma coisa da natureza muito presente na cidade, que adentra a cidade e acaba sufocada por ela. A geografia, o clima, um certo senso de humor, o que era muito difícil. Tinha a ver com muita cor, muito objeto, muito som, muita música. Foi para onde tentei ir para atualizar o gênero. Porque é lindo que pessoas de 70 anos vão ver o filme, mas também quero que pessoas de 20 anos assistam.
O que queria falar para as mulheres de hoje, que não passam pelas mesmas coisas que as personagens do filme? A Eurídice diz isso no filme, que ela precisa “matar” o pai dela, que na verdade significa a gente acabar com a hegemonia do patriarcado – eu sei que isso parece uma frase ambiciosa e teórica, mas não é. Queria muito que as mulheres entendessem que a gente não está aqui à toa, que houve uma luta gigante para a gente poder estar aqui. A segunda coisa que me interessa muito é falar da intolerância. Claro que aquilo ali raramente ia acontecer hoje – um pai expulsar uma filha de casa porque ela está grávida. E outra coisa que quero muito falar e que digo em todos os meus filmes é que tenho meio pavor de família de sangue. Eu acho que família são escolhas que você faz, são afetos que você elege e que te elegem. Queria falar quão tóxica essa família de sangue pode ser e do quão possível é você ter outras famílias.
O filme chega num momento em que se discute cada vez mais isso, em que os direitos das mulheres estão ameaçados e da defesa de uma família que só pode ser composta de mãe, pai e filhos. Existiu uma sincronia com o que está acontecendo agora. A minha questão era também por causa dessa sincronia saber qual era meu lugar de fala em relação a isso. Em muitos momentos eu falei: será que este filme não deveria ser feito por uma mulher? Eu acho que esse questionamento contaminou o filme de uma maneira muito positiva. Em nenhum momento fiz um filme feminista, porque acho que isso eu não poderia fazer. O que ficou claro para mim nos últimos três anos, não só em relação à situação da mulher, mas também o que está acontecendo no mundo e no Brasil, é que a pauta é o patriarcado. Cheguei à conclusão de que posso, sim, fazer este filme, porque não estou falando por ninguém, mas a partir de um lugar. A gente pode, sim, falar do outro. Não sou um homem heterossexual, branco, privilegiado, então tem ali um lugar de interseção nas nossas experiências.
Apesar de haver posições radicais sobre o lugar de fala – só mulheres podem fazer filmes sobre mulheres, só homossexuais podem contar histórias de homossexuais –, acha que os questionamentos são válidos? Acho isso bom. O lugar da arte é poder falar sobre o outro. Ficava me perguntando se eu não tinha direito de fazer O Céu de Suely e eu acho que tinha, sim. Será que não tinha direito de fazer Madame Satã? Porque não sou negro, mas sou gay. Pensando neste filme, achei que tinha, sim, mas a partir de que lugar? Porque é importante a gente se colocar no lugar do outro. Tive uma diretora assistente. Queria que o roteiro tivesse uma presença feminina. Queria que a fotografia fosse de uma mulher, não só por uma questão ética, mas por ser um filme muito íntimo, em que os corpos estão expostos. Queria que o filme fosse montado por uma mulher. A equipe de som era de mulheres, por causa dos microfones perto dos corpos. Porque não era simplesmente dizer que eu tenho direito, mas eu tenho direito dentro dessas condições. Era uma preocupação que eu tive. E que não sei se teria tido dez anos atrás, então é importante entender a produtividade dentro desse discurso.