A rebeldia roqueira planejada de Anitta e estrelas americanas
Em busca da imagem de revolucionárias empoderadas, elas retomam o estilo musical — agora descafeinado, mas lucrativo
Já faz algum tempo que Anitta intercala sua vida entre o Brasil e os Estados Unidos, onde busca trilhar uma carreira internacional — algo que muitos artistas brasileiros tentaram no passado, quase sempre em vão. Há duas semanas, a cantora deu um passo notável em direção a esse objetivo, ao tornar-se atração do concorrido programa The Tonight Show with Jimmy Fallon. Com maquiagem dark, imenso rabo de cavalo e um vestido preto todo rasgado de 23 000 reais, Anitta se afastou do visual de poderosa do funk para apresentar sua nova música em inglês, intitulada Boys Don’t Cry. Para os brasileiros, a maior surpresa não estava no figurino, mas na postura dessa Anitta “tipo exportação”: no palco do talk show, ela fez pose de roqueira rebelde e cantou acompanhada de uma banda clássica do gênero, com guitarra, baixo e bateria. Sacudiu a cabeça, fez caretas e — milagre — não rebolou.
A “inesperada” guinada de Anitta rumo ao rock não é, na verdade, nem tão surpreendente assim. Pragmática, a artista nunca teve pudor em ser uma esponja das tendências musicais do momento. Se ela decidiu apostar forte nessa seara, é porque seu tino comercial detectou o óbvio: o rock, aquele senhor grisalho surgido há mais de setenta anos, acaba de passar por mais uma reencarnação nos Estados Unidos. Em sua nova versão, ele é liderado notadamente por mulheres — Anitta veio apenas engrossar um filão em que já faziam barulho cantoras como Miley Cyrus e Demi Lovato, passando pela caçula Olivia Rodrigo.
Ao menos desde os anos 1980, década marcada por cabeludos de butique e bandas agridoces, uma pergunta volta e meia se impõe: o rock morreu? O tempo mostrou que, por algum capricho geracional insuspeito, o gênero de vez em quando ainda revela-se capaz de soltar uns grunhidos respeitáveis — foi assim que ele ressurgiu das cinzas no começo dos anos 1990, na esteira do grunge do Nirvana. No mais das vezes, contudo, retorna como farsa: um simulacro com a embalagem do velho rock’n’roll, mas, em essência, descafeinado. É esse o caso da nova onda de cantoras subitamente convertidas à rebeldia.
A alta concentração feminina diz algo essencial sobre a tendência. Na conjuntura atual, vestir a roupa de roqueira é uma forma de se diferenciar em meio ao surrado pop calcado no hip-hop e na música eletrônica. Mas não só: é, ainda, uma oportunidade de agregar à imagem um bem-vindo atestado de empoderamento e independência. Crias do Disney Channel, Miley Cyrus e Demi Lovato fizeram sucesso interpretando canções anódinas para adolescentes e amadureceram diante dos holofotes. Na vida adulta, não fazia mais sentido continuarem cantando músicas bobinhas como Party in the USA ou Cool for the Summer. Miley foi a primeira a se bandear para o rock, com o lançamento do álbum Plastic Hearts, em novembro de 2020, em plena pandemia. Com um visual provocativo, inspirado em Joan Jett, ela regravou clássicos do rock feminino como Edge of Midnight, de Stevie Nicks, e Heart of Glass, famosa na voz de Debbie Harry, do Blondie. Recentemente, Suzi Quatro, expoente do movimento punk dos anos 1970, disse que gostaria que Miley a interpretasse em um filme sobre sua vida.
Demi Lovato: Dancing With The Devil… The Art of Starting Over
Já Demi Lovato viu no rock mais que um veículo perfeito para expiar suas dores pessoais: depois de ter superado o vício em drogas e de ter produzido uma bizarra série de TV em que dizia ter contatado alienígenas, ela encontrou no gênero um jeito de ser levada a sério. No último mês, Demi apagou todas as imagens de seu Instagram e postou uma foto no estúdio com a legenda: “Um funeral para minha música pop”, indicando que seu próximo trabalho será rock’n’roll. Descoberta no TikTok, a incontornável ferramenta para criar hits hoje em dia, a estrela juvenil Olivia Rodrigo representa a nova geração de artistas pop que se embrenharam no rock. Sua música Good 4 U se tornou o marco do ressurgimento do famigerado “pop-punk” — agora tão limpinho que deixaria um Sid Vicious acabrunhado.
Anitta é talvez o exemplo mais eloquente do cálculo envolvido nessas reviravoltas de carreira. Recentemente, ela mesma admitiu que mantém uma persona diferente para cada tipo de mercado, sempre de olho na direção dos ventos. No Brasil, é a funkeira; na América Latina, investe no reggaeton; nos Estados Unidos, por fim, correu para onde as estrelas pop estão indo, o rock. Até agora, está dando certo: além de aparecer no programa de Jimmy Fallon, Anitta foi confirmada como destaque do disputado festival de Coachella. O antológico jornalista musical Lester Bangs certa vez pontificou: “Rock’n’roll é uma atitude, não estritamente um estilo musical”. Anitta e as novas adeptas do ramo deram outro sentido à máxima: o rock virou uma questão de cifrões, não propriamente de música.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776
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