Elas escondiam revólveres em ursinhos de pelúcia e bananas de dinamite nas roupas de baixo. Aprendiam a fazer coquetéis molotov e arremessá-los nos trens de carga alemães. Garotas com feições “arianas” que podiam se passar por não judias flertavam com nazistas — empanturrando-os de uísque, vinho e doces antes de matá-los a tiros. Quando as tropas da SS invadiram a Polônia, na eclosão da II Guerra, um grupo de mulheres judias, muitas delas mal saídas da puberdade, aderiu à luta armada e arriscou a vida para sabotar o regime. Daria um filme — e certamente dará. O diretor Steven Spielberg, que não costuma dar ponto sem nó, comprou os direitos do livro A Luz dos Dias — A História Não Contada da Resistência Feminina nos Guetos de Hitler, da canadense radicada em Nova York Judy Batalion, a quem encomendou o roteiro. Em entrevista a VEJA, instada a comentar a possibilidade de parar em Hollywood, Judy — cujo trabalho acaba de ser lançado no Brasil pelo selo Rosa dos Tempos, da Editora Record — sorri timidamente, cruza os dedos das duas mãos e sorri: “Tomara”.
O fio da meada puxado por ela é extraordinário, em capítulo pouco conhecido de um triste momento da civilização. A narrativa da guerrilha contra os invasores foi quase sempre masculina — e o que Judy faz é iluminar a extraordinária participação das mulheres. Ela demorou doze anos para finalizar a empreitada, embora fosse tema que tenha vindo do berço. A avó de Judy, Zelda, não lutou na resistência, mas fugiu da Polônia de modo espetacular. Atravessou rios a nado, se escondeu em um convento, flertou com o inimigo e foi parar em um campo de trabalho forçado da Sibéria antes de chegar a Montreal. “Minha bubbe era forte como um touro, mas perdeu o pai e três das quatro irmãs, que haviam permanecido em Varsóvia”, diz Judy. “Ela me contava essa história terrível todas as tardes enquanto cuidava de mim depois da escola, com lágrima e fúria nos olhos.”
A herança familiar, a um só tempo inspiradora e repressora, impedia Judy de avançar no relato — até que, em 2007, na Biblioteca de Londres, ela pôs as mãos nas páginas amareladas e nos ácaros de uma obra de 1946, escrita em iídiche, Freuen in di Ghettos (Mulheres nos guetos), uma antologia de 185 páginas de aventuras recheadas de progesterona, com centenas de nomes e pistas. Como aprendera iídiche na infância, fez-se luz em A Luz dos Dias. As heroínas eram membros de movimentos juvenis como o Liberdade (Dror) e o Guarda Jovem (Hashomer Hatzair) de simultânea orientação socialista e sionista. Tinham entre 15 e 20 e poucos anos e trabalhavam como mensageiras entres os guetos poloneses — eram mais de 400 — entrando e saindo disfarçadas. Eram as kashariyot, termo que, em hebraico, significa “conectoras”.
Transportavam livros, jornais, cartas, panfletos — e também armas. E só puderam fustigar os opressores por serem mulheres. Os homens que fingiam ser cristãos logo eram descobertos — bastava a polícia exigir que baixassem as calças para constatar que eram circuncidados. Elas, evidentemente, não tinham essa marcação anatômica. Como às meninas judias era dado estudar em escolas públicas na Polônia — os meninos iam para instituições de orientação religiosa —, falavam o polonês sem sotaque e sabiam os trejeitos das amigas cristãs. Por fim, como os alemães eram machistas até o último fio de cabelo, eram insuspeitas: como é que aquelas moças, dóceis e delicadas, poderiam ser tão bravas? “Elas sabiam que não venceriam a guerra, mas a pequena batalha do cotidiano era um imenso incentivo, por fazer justiça”, diz Judy.
Muitas daquelas batalhadoras, ou de seus descendentes, vieram ao Brasil, onde fundaram escolas, centros de estudo e de militância política no pós-guerra. A trajetória daquelas jovens merece ser sempre lembrada, para que a tragédia nazista não se repita. Não fossem as moças, é possível que levantes como o do Gueto de Varsóvia, que em abril completa oitenta anos, tivessem fracassado. Elas tinham chutzpah — a palavra em iídiche que pode ser traduzida como audácia ou insolência.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834