A vida por escrito
Jovens descobrem o prazer de pegar papel e caneta e anotar compromissos e projetos num caderno — 'bullet journal', em inglês mesmo — e ali organizar a vida
Se o Google tem agenda, se o smartphone tem agenda, se o relógio tem agenda, parece impossível que alguém ainda pegue papel e caneta para anotar seus compromissos, especialmente alguém com menos de 50 anos. Pois o impossível virou realidade, e partindo justamente da internet: jovens em busca de organização, sendo na imensa maioria mulheres, passam uma parte do seu dia caprichando nas anotações em uma caderneta em branco a que dão o nome de bullet journal — um diário (journal, em inglês) em tópicos (bullet, no caso, não tem nada a ver com bala de revólver, sua tradução literal, e remete àquelas bolinhas usadas para separar itens nos programas de texto). “Quem já é organizado tem a vida ainda mais facilitada. Quem não é aprende e melhora”, diz Renata Arrepia, da Sociedade Brasileira de Coaching, que usa e recomenda o recurso a seus pupilos.
Portador do transtorno de déficit de atenção, o designer americano Ryder Carroll, de 38 anos, elaborou o sistema de anotações, tabelas e checagem de resultados que batizou de bullet journal, “BuJo” para os íntimos. A disposição dos itens na caderneta é personalizada, adaptada às necessidades e aos desejos de cada um. As páginas são divididas em dias e meses pelo prazo que melhor agrada ao freguês: um mês, um trimestre, um semestre. Em seguida, anotam-se as metas e os compromissos do período e aplica-se seu cumprimento aos dias da semana. Aí é ticar o feito e rearranjar o pendente, tomando o cuidado de analisar os avanços e recuos e, eventualmente, riscar algum objetivo do horizonte.
O “BuJo” permite e incentiva a criação de listas de todo tipo — séries a ser vistas, livros a ser lidos, hábitos a ser cultivados. Vale a pena entremear as metas e compromissos com fatos do dia a dia, à moda “meu diário”. Para facilitar a composição, Carroll lançou no fim do ano passado um manual, O Método Bullet Journal. O maior expoente do “BuJo” é a canadense Amanda Rach Lee, que atrai ao seu canal do YouTube 1,2 milhão de fãs de suas páginas impecáveis.
Adepta do método há pouco mais de um ano, quando sentiu que precisava urgentemente se organizar para escrever sua tese de doutorado, a linguista Mariana Coutinho, de 28 anos, criou um perfil despretensioso no Instagram para trocar experiências sobre organização e já conta com mais de 2 700 seguidores. “Dá um grande prazer ver todos os quadradinhos de tarefas coloridos ao fim do dia”, diz Mariana, que enfeita cada mês com um tema diferente, de Harry Potter a Alice no País das Maravilhas. Ilustrações, aliás, devem ser usadas com parcimônia. “A meta é organização e autoconhecimento. Ninguém precisa ser artista”, disse Carroll a VEJA.
Os bullet journals estão reabilitando até a decadente indústria das agendas tradicionais com a produção de cadernos semipreparados, os chamados planners, que já vêm divididos por períodos, com marcadores, quadradinhos de checagem, listas e tabelas impressas e mensagens motivacionais para estimular os desanimados. Na editora Thomas Nelson, o produto campeão de vendas é o Meu Plano Perfeito, voltado para o público evangélico. Nele há espaços dedicados ao trabalho, aos cuidados da casa, aos relacionamentos e, claro, à leitura da Bíblia — ele inclui até receitas para o almoço de família. “A tiragem inicial de 10 000 exemplares esgotou-se em um dia”, diz o gerente de vendas Samuel Coto. As pesquisas confirmam que escrever metas e compromissos é um hábito saudável. Abstrair-se do ambiente digital dá ao cérebro uma necessária pausa no excesso de estímulos que recebe. Além disso, escrever a mão ativa mais áreas do cérebro do que digitar no celular. Vida longa ao papel e caneta.
Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619