Acredite: nas Olimpíadas do passado, artistas concorriam a medalhas
Competições que abarcavam da arquitetura à pintura aconteceram entre 1912 e 1948, e eram parte oficial dos jogos – mas foram esquecidas pela história
A cerimônia de abertura da Olimpíada de Tóquio acontece na sexta-feira 23 e, nas próximas duas semanas, homens e mulheres de corpos esculturais e habilidades quase sobre-humanas duelarão pelas cobiçadas medalhas dos jogos. Nem sempre, porém, eles foram os únicos dignos da premiação: há algumas décadas, acredite se quiser, você poderia comparecer ao torneio para assistir a arquitetos, músicos, escultores, escritores e pintores conquistarem algumas das 151 medalhas atribuídas a artistas olímpicos entre 1912 e 1948.
Embora pareça estranho, e totalmente obscuro, a fase realmente existiu, mas não teve muito impacto nas artes ou nos Jogos Olímpicos: as medalhas atribuídas a essas atividades, inclusive, foram desconsideradas e não fazem mais parte da contagem oficial dos países. Os detalhes que se sabe estão espalhados por estudos pontuais ou condensados no livro The Forgotten Olympic Art Competitions, de Richard Stanton, um dos únicos existentes sobre o tema.
Na obra, Stanton conta que tudo começou com uma figura conhecida da história das Olimpíadas: o Barão Pierre de Coubertin, um dos fundadores do Comitê Olímpico Internacional, criado em 1894. Dois anos depois, em Atenas, aconteceria a primeira edição das Olimpíadas modernas, mas a arte, como hoje, não fazia parte das competições oficiais. Assim foi até 1906, quando Coubertin propôs que os jogos tivessem também uma dimensão artística.
“Ele partiu do pressuposto de que os Jogos Olímpicos deveriam se inspirar na concepção de olimpismo da Grécia clássica, em que corpo, mente e intelecto não podem estar separados”, explica a historiadora Juliana Carneiro, que se debruçou sobre as Olimpíadas em seu doutorado. A ideia enfrentou resistência, e só foi tirada do papel nos jogos de Estocolmo, em 1912, quando foram inauguradas as cinco modalidades artísticas do “pentatlo das musas”: pintura, escultura, literatura, arquitetura e música.
A lógica era a mesma das competições esportivas: os artistas apresentavam seus trabalhos, que precisavam ser inéditos, e eram avaliados por uma série de jurados, que atribuíam notas para cada um deles, entregando as medalhas ao final. Seguindo o modelo da Antiguidade clássica, apenas amadores podiam competir, e os trabalhos precisavam estar relacionados ao esporte.
Essas características limitavam a quantidade de participantes e a diversidade da premiação – muitas das obras arquitetônicas, por exemplo, eram projetos de estádios e arenas projetados para os próprios jogos, e as músicas soavam mais como hinos que sinfonias. As edições que se seguiram ainda impuseram um limite máximo de 20 000 palavras para trabalhos literários e uma hora para as produções musicais, a fim de dar aos jurados tempo hábil para avaliar todos os competidores.
Na edição de 1932, em Los Angeles, cerca de 400.000 pessoas visitaram a exibição dos competidores no Museu de História, Ciências e Artes. Naquele ano, John Russell Pope, arquiteto responsável pelo Jefferson Memorial, em Washington, ganhou uma medalha de ouro pela concepção do Ginásio Payne Whitney, construído na Universidade de Yale. O escultor italiano Rembrandt Bugatti, o ilustrador americano Percy Crosby, o autor irlandês Oliver St. John Gogarty e o pintor holandês Isaac Israels são outros participantes que também foram agraciados com uma medalha olímpica de artes. Mas quem se lembra deles hoje?
Um fato curioso é que o próprio Barão de Coubertin foi um dos vencedores. Ao que parece, ele temia que não houvesse competidores suficientes na primeira edição dos Jogos, o que frustraria sua ideia de integrar as artes à competição. Por isso, inscreveu um poema de sua autoria sob os pseudônimos de George Hohrod e Martin Eschbach, conquistando o ouro em 1912. A maioria dos vencedores, porém, é composta de completos desconhecidos hoje em dia, e que não tiveram impacto nas artes ou nas olimpíadas.
Uma das competições artísticas mais emblemáticas, porém, aconteceu nos Jogos de Berlim em 1936. Sob o domínio de Hitler, a Alemanha sacou o poder simbólico dos Jogos e resolveu passar para o mundo uma imagem ligada à Grécia Antiga, na tentativa nazista de reforçar a superioridade ariana. Naquele ano, a Áustria e a Alemanha dominaram a competição nas artes: a Áustria levou para casa o ouro e o bronze em arquitetura, e deixou a prata para a Alemanha, que levou o ouro nas três categorias musicais, em escrita lírica, escultura em relevo, e em dois dos três prêmios para planejamento urbano, entre outras – há de se destacar, porém, que os jurados eram em sua maioria alemães, o que lançou desconfiança sobre a competição.
Nos anos que se seguiram, duas edições das Olimpíadas foram canceladas em função da II Guerra Mundial, que arrasou a Europa até 1945. Com o retorno dos jogos, em 1948, a qualidade questionável das obras e o avanço do esporte tinham feito a população perder o apreço pelas competições artísticas. “O COI reclamava de gastar dinheiro e planejar uma super logística, sendo que quase ninguém se interessava por essas competições”, explica Juliana Carneiro. Uma tentativa de autorizar profissionais até foi feita para resolver o problema da qualidade, mas o órgão acabou por decidir que as artes não teriam mais lugar nas Olimpíadas.
Hoje em dia, a cultura nas Olimpíadas está muito mais relacionada a cerimoniais e programações que podem se estender durante todo o período pré-olímpico. A arquitetura e seu simbolismo também seguem cumprindo um papel importante para passar ao mundo uma imagem específica do país. Quanto às medalhas artísticas, uma das últimas que se tem conhecimento foi uma prata para o britânico John Copley, em 1948, por uma representação de jogadores de polo. Na ocasião, ele tinha 73 anos e, caso as medalhas ainda fossem contabilizadas, seria considerado o medalhista olímpico mais velho da história.