Afinal, novela deve entreter ou informar?
Autores da Globo vivem dilema diante de pesquisa da emissora que revela que muitos não sabem, por exemplo, que o Brasil foi colonizado por Portugal
O estarrecedor resultado de uma pesquisa realizada pela Globo com o público-alvo de suas novelas indicou que muitos brasileiros têm parcos conhecimentos de história. Há quem não saiba que o país saiu de uma ditadura militar há menos de quarenta anos e mesmo quem não faça ideia de que aqui se fala português porque o Brasil foi colonizado por Portugal. A emissora conduziu as pesquisas depois da estreia de duas tramas de época, Novo Mundo, folhetim das 6 que se passa no século XIX e conta com personagens históricos como Dom Pedro I, e Os Dias Eram Assim, das 11 da noite, que transcorre nos anos de chumbo. Das duas, Novo Mundo é que a mais toma liberdade em relação aos livros de história. Uma questão controversa. Produto cultural mais consumido do país, as novelas têm, para alguns especialistas, a obrigação de informar o espectador, que já conta com um sistema nacional capenga, para dizer o mínimo. Já outros especialistas no tema defendem a liberdade de criação da dramaturgia, como a de qualquer tipo de arte, e veem a novela como uma faísca que pode acender o interesse por um tema – e daí levar alguém a pesquisar, estudar e se informar.
VEJA ouviu seis dos maiores especialistas em folhetim do país. A maioria – quatro deles – diz que, sim, a novela deve ser fiel aos fatos e levar em conta o nível de desinformação em que se encontra o espectador. Confira abaixo a posição de cada um.
“A novela é livre”
Mauro Alencar, doutor em telenovela pela USP
“A responsabilidade pela formação cultural do espectador não é do autor, é do próprio espectador. A falta de conhecimento chegou em um ponto de esculhambação. Isso é muito sério para o país. Em Buenos Aires, na vizinha Argentina, não é assim. O país passou por uma forte crise político-econômica e mantém sua cultura em pé. É irritante a falta de conhecimento geral do brasileiro. É falta de educação, mas também de comprometimento com o cultural. Uma falta de carinho e de apreço com a memória histórica e afetiva, por nossa cultura.
A formação cultural de base não passa pela arte. Ela pode propiciar isso, mas não a tem obrigação. A novela não é escrita por um historiador. Se o jornalismo e o documentário imprimem a linguagem da realidade, o autor de teleficção, respeitando certos limites conceituais, tem o direito de recriar a realidade. É primordial para que a arte respire. A arte é uma recriação da vida. Caso contrário, jamais teríamos os gêneros literários. Basta repassar a obra de alguns clássicos como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Bernardo Guimarães. Se Guimarães fosse se ater à realidade, talvez nunca tivesse criado uma escrava branca para denunciar os horrores da escravidão e nunca tivesse existido A Escrava Isaura, o romance que virou novela. Base da telenovela, na Escola Romântica da literatura contava com um amplo leque de possibilidades artísticas, estéticas e de manuseio da realidade.
O limite está na maneira como o autor da ficção irá organizar as peças de sua história; ou seja, como irá travar o diálogo entre a ficção e a realidade. Assim não fosse, jamais teríamos obras tão valorosas como as José de Alencar, que em muito ficcionalizou um panorama do Brasil de norte a sul, valendo-se tanto de sua viagem do Ceará ao Rio de Janeiro como de sua imaginação sobre a vida no sul do país, por exemplo. E, no entanto, estão todos representados em sua magnífica obra: a vida na Corte; o índio; o português; o sertanejo; o gaúcho.”
“Liberdade, mas com cautela”
Claudia Braga, professora da Unicamp
“Considerando, antes de mais nada, que ficção é ficção, e tem suas necessidades narrativas próprias, é claro que, em se propondo a dar informações sobre nossa história, uma novela deve buscar ater-se o mais possível à fidelidade dos fatos. Em um mundo como o atual, afogado de informações imediatas (ou mesmo desinformações), seria ingenuidade acreditar que um espectador fosse ele mesmo buscar se informar sobre nossa história, se ainda não a conhece. O ‘reino’ atual é o de aceitação sem verificação mesmo das mais inacreditáveis ‘fake news’. Assim, não cabe imaginar que o espectador iria se ‘responsabilizar por se informar’.
No caso do autor, deve-se lembrar que é um autor de ficção. Não um historiador. É claro que ele tem certa obrigação de se embasar minimamente, de modo a não inserir absurdos históricos em sua narrativa, mas é certo também que pode tomar poéticas variáveis, ou sua narrativa corre o risco de se tornar um ensaio acadêmico.
Quanto a D. Pedro I, que parece simpático à causa indígena em Novo Mundo, coisa que nunca foi documentada, não creio que seja, no entanto, um problema, posto que é necessário, em nossos dias, atentar para o grave problema da ausência de demarcações, do desrespeito aos povos e seus costumes, enfim, de nossa ignorância com relação aos problemas enfrentados por nossos habitantes primitivos. Poderíamos dizer que é a mesma licença poética que utiliza José de Alencar. Ou o impediríamos de criar personagens como Peri ou Iracema, indígenas absolutamente idealizados de nossa literatura romântica?”
“Informação é problema do público”
Claudino Mayer, doutor em ciências da comunicação pela USP
“A novela não tem obrigação de ser fiel aos fatos históricos que todos nós já conhecemos ou deveríamos conhecer. A novela trabalha com contexto. A forma como a história é contada não importa. O que interessa é que ela traga algum elemento que faça referência aos fatos históricos. Se o espectador não reconhece, é uma questão, um problema, do público. A novela pode suscitar o interesse e fazer o espectador estudar, pesquisar. A pessoa deve questionar e ir atrás das informações. Nós vivemos numa espécie de demência coletiva, que já não importa de onde veio, nós precisamos é questionar o que vemos.”
“Licença beira a irresponsabilidade”
Paulo Rezzutti, autor de D. Pedro, a História Não Contada e D. Leopoldina: a História Não Contada – a Mulher que Arquitetou a Independência do Brasil
“Quanto mais as novelas se distanciam dos fatos e até da linha de tempo em que eles ocorreram, o que seria ficção histórica acaba virando história alternativa. Se a ficção já é tomada como verdade pelo brasileiro médio que não tem maturidade intelectual para discernir fatos romanceados de realidade, beira a irresponsabilidade a falta de cuidado com os elementos históricos salpicados feito tempero ao longo das tramas.
O nível intelectual do espectador não é dos mais altos e isso faz com que ele acabe comprando como verdade algo sobre o qual nunca havia ouvido falar antes. Basta ver os comentários à Marquesa de Santos nas mídias sociais. A história dela não é a que está sendo contada em Novo Mundo, o personagem está sendo deturpado para caber no papel de vilã.”
“A verdade deve ser respeitada”
Renata Pallottini, dramaturga, poeta e professora
“Acho que, num país onde a educação formal é tão precária, de tão má qualidade, tão mal paga e tão mal acompanhada por uma vida cotidiana infeliz, sacrificada e carente, as pessoas que se dedicam a escrever textos de vários tipos, que serão, depois, apresentados a um grande público, devem cuidar da verdade, além da verossimilhança. ‘Verossimilhança’ é aquela qualidade dramática que faz com que os fatos apresentados sejam passíveis de realidade. Além dessa verossimilhança, porém, é preciso cuidar da verdade, quando se apresentam espetáculos históricos que atingem grandes públicos. O autor terá, sempre, seus próprios pontos de vista, mas existe uma verdade objetiva, que coincide com os fatos e que deve ser respeitada. Não se trata, no caso, de opinar pela censura, à qual nos opomos, mas de coerência, de respeito ao real.”
“Questão moral, não artística”
Clarice Greco, professora da Unip, doutora pela USP
“Na minha opinião, a arte não só tem e deve ter licença poética como é muitas vezes definida como arte justamente pela liberdade criativa. E, se a telenovela aspira ser uma manifestação artística, além de um produto cultural (concordem os críticos ou não, é uma narrativa audiovisual que pode e é muitas vezes pensada como arte popular), ela pode fazer uso dessa licença poética. E, dada a importância que tem como produto, ela pode aproveitar sua posição de palco de debates do país para educar. É mais uma questão de cunho moral do que artístico, nesse caso: encarar o púlpito como uma oportunidade de gerar melhoria social.”