Horas após receber o rotineiro beijo de “boa noite” de sua mãe, o garoto de 11 anos acorda com ruídos vindos da suíte ao lado: um entra e sai frenético no banheiro e diálogos entrecortados de inalações rápidas. Foi um choque perceber pela primeira vez o consumo de drogas dentro do apartamento e, se não bastasse, com a participação da mãe, Elis Regina. Ao revisitar suas memórias sobre essa festinha, ocorrida alguns dias antes da tragédia que abalaria o país, João Marcello Bôscoli revela que teve o ímpeto de interromper a balada, mas faltou-lhe coragem. “Se eu tivesse ido lá, o destino seria outro?”, questiona no capítulo inicial de seu livro, Elis e Eu (Editora Planeta – compre aqui), que acaba de ser lançado. O destino ao qual João se refere, o país todo conhece: no dia 19 de janeiro de 1982, o coração da maior cantora do Brasil parou de bater devido a um choque anafilático causado pelo uso de cocaína misturada ao vermute Cinzano. O garoto viu a mãe sair com um fiapo de vida de casa, balbuciando palavras desconexas e carregada para o hospital pelo namorado Samuel Mac Dowell.
Produtor musical e empresário, João Marcello é o mais velho dos três filhos da artista (seus irmãos são os cantores Pedro Mariano e Maria Rita) e o primeiro deles a produzir uma obra sobre a mãe. Hoje com 49 anos e pai de dois filhos, Arthur, 8, e André, 3, a quem dedica Elis e Eu, o autor usou as próprias memórias como matéria-prima, sem a pretensão de fazer uma nova biografia sobre a cantora. Assim, a narrativa é construída com as recordações de quem cresceu paparicado pela mãe, que não vacilava em dar ao filho duros castigos a cada travessura dele, e vendo de perto o incomum universo em torno de uma estrela do quilate de Elis. João Marcello foi testemunha privilegiada de cenas como ensaios na garagem de casa conduzidos por Cesar Camargo Mariano, o pianista que foi o segundo marido da artista, com quem ela realizou seus melhores trabalhos, e encontros nos Estados Unidos para a gravação do antológico álbum Elis & Tom, em 1974, com direito a uma escapada com a mãe para a Disney. “As lembranças tornaram-se um porto seguro emocional”, diz João Marcello. Até hoje ele fica com olhos marejados ao recordar a primeira vez em que entrou, depois da morte de Elis, no quarto dos irmãos (Pedro tinha 6 anos; Maria Rita, 4). Viu pessoas próximas se afastar (a quem chama de “parasitas sociais”) e gente sumindo com roupas e bens de Elis em meio à confusão da tragédia (“diziam que precisavam colocar na roda para a ‘energia fluir’”). Sentiu vergonha, na volta às aulas, ao encontrar um bilhete com um pedido de bolsa de estudos.
Além das memórias do luto, o livro tem outro eixo emocional, bem mais leve, composto de cenas da intimidade familiar. João descobriu que a mãe era famosa quando estavam em uma feira de rua e ele notou o burburinho em torno dela. Também há o pânico de músicos pelo sumiço do então filho único durante as gravações de Elis & Tom. A cantora, desesperada, pôs toda a equipe para descobrir seu paradeiro. Quando já estavam na rua, veio o alívio geral: João dormia dentro do bumbo de bateria. Desfecho diferente se deu quando Elis notou outra ausência: duas cédulas haviam sumido de sua bolsa. Como castigo, deixou João dormindo na área externa da casa da Serra da Cantareira, região bucólica de São Paulo onde a família viveu parte dos anos 70. Tarde da noite, uma babá ia resgatá-lo. Tempos depois, sofreu uma nova expulsão. João tinha voltado encantado de uma visita à luxuosa residência de um amigo da escola, com direito a mordomo, fliperama… Elis ficou possessa ao descobrir quem era o dono da casa, deu uma bronca no filho e o pôs para dormir na área de serviço como castigo. Era para ele aprender que o dinheiro da corrupção bancava todo aquele luxo. Lição entendida, João nunca mais pisou na casa de José Maria Marin (atualmente, o político vive em prisão domiciliar em Nova York, depois de ter sido condenado a quatro anos de cadeia por desvios cometidos como cartola da CBF). Por essas e outras, Elis decidiu matricular o filho mais velho em um colégio público para que ele tomasse um choque de realidade. Ela mesma levava e buscava o garoto. Nessa época, começou a notar a presença de militares que monitoravam o percurso. “Tem ‘boi na linha’, filho”, dizia a cantora, que estava na lista negra de artistas do regime militar.
Após a morte de Elis, João precisou deixar o apartamento onde vivia, mudou-se para a casa dos avós maternos, passou a visitar no Rio de Janeiro o pai, Ronaldo Bôscoli, com mais frequência, e perdeu a convivência com seus dois irmãos, que foram morar com o pai deles, Cesar Camargo Mariano. Apesar do corte brusco provocado pela tragédia, João teve tempo de acompanhar a construção do trabalho de uma artista obcecada pela música e pela perfeição. Elis passava dias escutando fitas para selecionar repertório. Ao perder a mãe, o menino pôs na cabeça que, de alguma forma, ela continuaria presenciando tudo o que ele fazia. A solução: “Não me permiti ser uma pessoa triste”.
Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657