Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

Anita, Tarsila e Pagu: as mulheres que moldaram o modernismo brasileiro

Artista movimentaram a arte e a política em uma época em que a figura feminina tinha pouco espaço para além dos papéis de mãe e esposa

Por Amanda Capuano Atualizado em 25 nov 2021, 16h39 - Publicado em 25 nov 2021, 15h03

Em dezembro de 1917, uma ousada Anita Malfatti (1889-1964) chocou a elite intelectual brasileira com uma mostra artística onde a beleza, no sentido mais explícito da palavra, não era o elemento principal. Aos 28 anos, e de família abastada, ela acabara de voltar de uma temporada de estudos em Nova York, onde bebeu da ebulição de movimentos de vanguarda como o expressionismo de Homer Boss, até então pouco conhecido por aqui. De volta ao Brasil, expôs suas pinturas, aquarelas e gravuras em São Paulo, mas as cores vibrantes nada naturais e os traços sem apego ao realismo acadêmico despertaram a fúria de Monteiro Lobato (1882-1948), então colunista do jornal O Estado de São Paulo, provocando uma das rixas mais conhecidas da história cultural brasileira. “Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e ‘tutti quanti’ não passam de outros ramos da arte caricatural”, escreveu ele. A crítica afiada inflamou os ânimos dos modernistas e foi a primeira fagulha que culminou, anos depois, na Semana de Arte Moderna de 1922. Em uma época em que as mulheres sequer eram autorizadas a votar no Brasil, Anita Malfatti se tornou expoente da maior revolução da arte nacional — mas ela não estava sozinha na vanguarda feminina.

No início do século XX, cabia à mulher brasileira casar-se, ter filhos e cuidar da casa. Para os membros da alta sociedade, no entanto, mandar os herdeiros à Europa ou aos Estados Unidos era sinal de status, e algumas mulheres, embora em menor número do que os homens, desfrutavam de tal privilégio. Em um tempo em que o Brasil ainda via a arte através de um cabresto conservador, nomes como Anita, Tarsila do Amaral (1886-1973) e Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), mergulharam na ebulição artística e política do velho continente, retornando ao país com ideias modernistas na bagagem. “A participação feminina nos movimentos de vanguarda da arte no Brasil se destaca com relação a outros países. Por aqui, as mulheres entraram para a história. Foi uma exposição da Anita que deflagrou todo o movimento, isso não aconteceu em outros países,” explica Andreia Vigo, assessora técnica à frente da Agenda Tarsila, projeto da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo que celebra o centenário da semana de 22 com mais de 260 eventos agendados até dezembro do ano que vêm.

/
O Homem Amarelo, quadro de Anita Malfatti exposto durante a Semana de 1922 (Acervo IEB USP/Reprodução)

Capitaneada por um desejo de revolucionar a arte e opor-se ao caretismo personificado na crítica de Lobato, a Semana de Arte Moderna abriu as portas em 13 de fevereiro de 1922, com a presença de artistas plásticos, músicos, poetas e escritores. Majoritariamente masculino, e restrito à elite, o evento teve apenas três mulheres em seu quadro de participantes: a pioneira Anita Malfatti e Zina Aita (1900-1967) expuseram quadros autorais, enquanto a pianista Guiomar Novaes adaptou um recital de Chopin — uma das poucas performances que agradou o público provinciano. Elas, porém, não foram as únicas a marcar época.

Continua após a publicidade

No final daquele ano, Tarsila do Amaral retornou ao país depois de uma temporada em Paris e foi apresentada por Malfatti aos principais nomes do modernismo brasileiro, como Di Cavalcanti (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954). Com o contato, a artista caiu nas graças da nova arte e se tornou, na década seguinte, o principal expoente do movimento. “Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra”, escreveu em 1924, reproduzindo o discurso de brasilidade que habitava o cerne do modernismo. Assim, Tarsila debruçou-se sobre a terra natal, vertendo tudo em obras de cores vibrantes e figuras disformes. O Abaporu, pintado em 1928 como um presente ao marido Oswald de Andrade, é até hoje uma das obras mais importantes da arte brasileira, e inspirou Oswald no célebre manifesto que inaugurou o movimento antropofágico — corrente liderada pelo casal que almejava “comer” a cultura europeia e substituí-la por uma identidade nacional. Daí surgem obras como A Cuca (1924), em que a artista mescla animais típicos da fauna brasileira, como o sapo e o tatu, a bichanos peculiares fruto de sua imaginação.

/
A Cuca, de Tarsila do Amaral (Acervo Tarsila do Amaral/Reprodução)

Mais adiante na carreira, a artista incorporou a sua obra elementos de forte apelo social, que bebiam de reivindicações da sociedade. A tela Operários (1933), por exemplo, surgiu depois que a artista se sensibilizou com a causa trabalhadora durante uma viagem à Rússia. As questões sociais, aliás, estão intrinsecamente ligadas ao modernismo. Enquanto os artistas plásticos davam forma ao movimento rompendo os padrões de beleza e ordem difundidos por séculos na arte, as ruas reivindicavam mudanças de costumes e uma quebra com a elite. Nesse cenário, Patrícia Galvão, a Pagu, emergiu como uma voz da elite intelectual que passou a bradar em nome do povo. A garota tinha apenas 12 anos durante a semana de 1922, mas já era considerada musa. Aos 18, foi sugada pelo movimento ao ser introduzida ao modernismo por Oswald e Tarsila, que colocaram a então adolescente para participar de um sarau de poesia. Anos depois, seria o pivô do divórcio do casal, casando-se com Oswald.

Continua após a publicidade
/
Na foto, Anita Malfatti, Tarsila do amaral e Pagu aparecem à frente, da esquerda para a direita (Acervo MIS/Reprodução)

Traições à parte, Pagu destacou-se por meio do modernismo escrito, divulgando o movimento através de textos em jornais e livros, além de ter participações importantes também no teatro. “Primeiro ela surge como musa, que era o papel reservado à mulher até então, mas logo prova que não é apenas uma moça bonita. Ela entra no modernismo escrevendo para a Revista de Antropofagia, também faz desenhos e cadernos”, explica Lúcia Teixeira, biógrafa e fundadora do Centro Pagu Unisanta.  Mulher e membro de uma família de São Paulo, ela surpreendeu ao se envolver ativamente com a militância política, filiando-se ao Partido Comunista. Ativa em protestos, ela acaba se tornando a primeira presa política no país. Sua voracidade preocupava o partido, que acreditava que a garota chamava atenção demais. Para provar sua lealdade, lança em 1933 o livro Parque Industrial, tido como o primeiro “romance proletário” do Brasil. “Era uma época em que o partido tinha desconfiança dos intelectuais e, como mulher e membro de uma classe média alta, ela chamava muita atenção, então queria mostrar para eles uma seriedade de propósito”, conta Lúcia.

Tida como “avançada demais” para a época, Pagu era vista na sociedade como uma mulher fora de controle. Apontada como destruidora do casal que a acolheu e presa 23 vezes ao longo da vida por seu ativismo político, ela tinha todos os dedos daquele mundo apontados para si. As críticas, no entanto, apenas alimentavam o seu lado aventureiro, em um contraponto aos ataques sofridos por Malfatti, que fizeram da pintora uma mulher muito mais reclusa e comedida. “Ela sempre teve esse espírito crítico de não aceitar o destino que era reservado para as mulheres na época. Pagu simbolizava o espírito de rebeldia dos modernistas”, conclui. Mais do que ela, no entanto, o modernismo brasileiro, dado o devido crédito a nomes como Oswald e Mário de Andrade (1893-1945), ficou marcado, acima de tudo, por suas mulheres.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.