Arqueólogo que encontrou teatro de Nero revê fama de carrasco do imperador
Em entrevista a VEJA, responsável pela escavação analisa a descoberta que abre mais uma janela para a Roma Antiga e seus controversos líderes
Reza a lenda que, no ano 64 depois de Cristo, o imperador romano Nero teria deflagrado o grande incêndio de Roma. Enquanto observava a cidade ruir em chamas, ele tocava harpa, em um gesto cruel e símbolo de sua egolatria. O mito é hoje posto em xeque, mas resume como a figura de Nero ficou marcada ao longo dos séculos: um líder impiedoso, terrível, até sádico. Na última década, porém, historiadores vêm revisitando criticamente suas fontes, constatando que, talvez, ele não fosse tal malvado. Embalada pelas especulações, está a recente descoberta do teatro de Nero, nas ruínas soterradas da Roma Antiga. O local é descrito em alguns textos antigos, principalmente pelo filósofo Plínio, o Velho, como um espaço onde Nero cultuava sua paixão pelas artes dramáticas. “É uma descoberta importante do ponto de vista material e simbólico. Material, porque se sabia que o teatro tinha existido, mas seus destroços nunca foram encontrados. Do ponto de vista simbólico, estamos em uma área importante da história de Roma, e esta escavação evidencia alguns momentos da dinastia Júlio-Claudiana, da qual Nero foi o último imperador”, disse em entrevista a VEJA o arqueólogo responsável pela escavação, Renato Sebastiani.
A riqueza dos materiais utilizados e a elevada qualidade técnica — com suntuosas colunas trabalhadas em mármores preciosos e estuques decorados com folhas de ouro — atestam que se trata de uma obra realizada para a família imperial, aponta o arqueólogo. Além da construção correspondente ao espaço do teatro, foram encontrados cálices de vidro colorido e peças de cerâmica nos escombros. A região da escavação corresponde à chamada Ager Vaticanus, planície na margem direita do rio Tibre, onde, antes de Nero, existiram as Horti (grandes vilas dedicadas ao lazer) de Agripina Maior, sua avó, e o circo de Calígula, seu pai. “Descobertas arqueológicas geralmente têm implicações mais amplas além de seu significado histórico imediato, contribuindo para uma compreensão mais rica da cultura e sociedade humanas. Elas fornecem aos estudiosos um vislumbre do estilo de vida, prioridades e gostos da elite romana e da população em geral”, analisa Vagner Cavalheiro Porto, doutor em Arqueologia pela USP e coordenador do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial na mesma universidade.
Nero governou de 54 a 68 d.C., assumindo o poder aos 16 anos com a morte de seu tio, o imperador Cláudio. Nero tinha personalidade controversa, e seu governo também foi polêmico. A tortuosa — e por que não trágica — trajetória do soberano mostra sua obsessão por conspirações, o que o levaria a matar pessoas próximas, da sua própria mãe ao filósofo Sêneca, que fora seu tutor. Quando se viu sozinho, Nero cometeu suicídio. “O historiador romano Tácito e a historiografia de cunho cristão acentuaram bastante a crueldade de Nero, que culpou cristãos pelo incêndio em Roma e ordenou a morte de milhares deles. Sua reputação negativa intensificou-se em razão de suas extravagâncias e despesas excessivas, financiadas por altos impostos, o que levou a revoltas e descontentamentos em algumas províncias”, explica Porto.
O imperador tentou implementar, na primeira parte de seu reinado, importantes reformas econômicas destinadas às classes trabalhadoras e à plebe, além de liderar os esforços para a reconstrução de Roma após o grande incêndio. Algumas de suas políticas geraram inimizade com grande parte do Senado romano — eis, portanto, o registro amplamente disseminado sobre ele. As informações acerca de Nero, afinal, ficaram marcadas na história através dos escritos de seus opositores políticos, membros da elite, e, por isso, podem conter exageros e distorções.
Parte da revisão histórica realizada atualmente destaca o papel de Nero como um incentivador das artes. Segundo Porto, relatos apontam o imperador como entusiasta da música, principalmente do canto e da lira. “Diz-se que ele aspirava a se tornar um ator, músico e poeta de renome, chegando a se apresentar em público em várias ocasiões. No entanto, a qualidade de suas habilidades artísticas foi muitas vezes objeto de piada e crítica, e alguns historiadores sugerem que seu talento não era excepcional”, conta. Nero realizava espetáculos públicos e festas estrondosas, com apresentações elaboradas. “Seu gosto pessoal foi narrado como a expressão do narcisismo e de uma pessoa desequilibrada. Na verdade, Nero, como muitos outros imperadores, usava a arte como instrumento de comunicação cultural e de poder sobre o povo. O teatro também é um instrumento dessa política”, conclui Sebastiani.