Babado forte no Pancadão
Nos bailes onde se celebra o funk, o machismo persiste e facções criminosas mantêm controle sobre tudo. Mas algo mudou: o público LGBT agora é bem-vindo
O relógio marca 6h50 da manhã de domingo quando o DJ carioca Renan Santos da Silva, conhecido como Rennan da Penha, assume um dos cinco pickups do Baile da Gaiola — festa funk que reúne 10 000 pessoas todo fim de semana na Vila Cruzeiro, favela do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro. De óculos Oakley, boné Calvin Klein, camiseta Gucci e catorze correntes de ouro no pescoço, o ex-vendedor de refrigerante em semáforo é o mentor e a principal atração do mais badalado pancadão carioca do momento, com seu cardápio frenético de funk a 150 batidas por minuto — variação do gênero que ganha cada vez mais apelo nos bailes cariocas. Por oito quarteirões, testemunha-se o roteiro usual das festas em áreas dominadas por facções — no caso, o Comando Vermelho: música que enaltece a bandidagem, traficantes desfilando com fuzis e consumo sem cerimônia de drogas como lança-perfume, maconha, ecstasy e cocaína. Se, no que diz respeito à ausência do Estado, o enredo se mantém o mesmo por décadas, agora há um novo padrão comportamental. Sob a tenda de lona do Baile da Gaiola, que protege de chuva e dos binóculos da polícia, o público LGBT é muito bem-vindo.
Antes um típico endemismo carioca, o funk ganhou inegável dimensão nacional nos últimos anos. Com o impulso de artistas como Anitta, mesclou-se ao pop e conquistou as rádios e plataformas digitais. Graças à ascensão de uma geração de funkeiros paulistas, agora se torna definitivamente mais profissionalizado e palatável (leia reportagem). Mas é nos grandes bailes das favelas que o funk “de raiz” continua pulsante. Ali se forjam os próximos Negos do Borel ou Ludmillas (aliás, as duas estrelas já se apresentaram no Baile da Gaiola). É também onde certas marcas originais do funk resistem, como as letras explícitas e a flagrante simbiose com a marginalidade — além de certos preconceitos arraigados.
Embora alguns artistas do funk enalteçam a liberdade sexual, como fizeram o DJ Marlboro no passado e Valesca Popozuda mais recentemente, a realidade dos bailes nunca foi rósea para o público LGBT. Isso está mudando. “Há quatro anos, se eu visse dois caras se beijando, iria recriminar e pedir para se afastarem”, admite o próprio Rennan da Penha. “Mas amadureci. Preconceito é coisa de gente velha da cabeça.” Estima-se que 30% dos frequentadores de bailes como o da Gaiola sejam gays, lésbicas e transexuais, a maioria com idade entre 15 e 25 anos. Há marombados que dispensam camisa para mostrar os músculos e os ditos “fashionistas”, adeptos de roupas cheias de logomarcas. A grife da vez é a italiana Gucci, presente em camisetas, bonés e tênis (tudo em geral falsificado). Gays se beijam e paqueram ao lado de heterossexuais, sem sinal de preconceito. “Podemos usar roupas chamativas que não tem caô”, diz o estudante de teatro Jonas Lima, de 19 anos. “Já beijei sete caras em uma noite, e ninguém olhou feio.”
Fundador da produtora Furacão 2000 e responsável por lançar gente como Anitta, o empresário do funk Rômulo Costa vê a mudança de público como algo comum: “O baile é um recorte da sociedade. Os gays conquistaram direitos como a união civil, então é natural que exerçam a liberdade de curtir uma festa de mãos dadas com o companheiro”. O Baile da Gaiola não é fenômeno isolado no Rio. Os pancadões Via Show da 13, na Cidade de Deus, e Baile da Colômbia, no Complexo do Lins, são tomados pela diversidade sexual. “Até cinco anos atrás, as pessoas ligadas ao tráfico não trocavam ideia com gays”, diz o bailarino Tago Oli, de 24 anos, morador da Cidade de Deus. “Hoje, nós nos sentimos seguros.”
Em São Paulo, o Baile da DZ7, na favela de Paraisópolis, reúne dois atributos: é o maior baile funk da capital paulista, com 15 000 pessoas, e exibe expressivo público LGBT. “Ando de mãos dadas com meu namorado sem ser incomodada”, conta a transexual Vitória Monforte. Ela recorda um episódio recente para ilustrar a tolerância. Ao ser caçoada por um sujeito que bebia em cima de uma moto, viu quatro homens heterossexuais — todos moradores de Paraisópolis — expulsar o homofóbico.
Mas seria enganoso achar que esses ambientes se tornaram livres de preconceito da noite para o dia. Letras de funk retratam as mulheres como objetos sexuais — ainda é corrente a infame qualificação “cachorra”. O funkeiro MM elevou a octanagem da grosseria com uma pérola intitulada Adestrador de Cadela. “Tem mulher que não liga e até gosta, mas é fundamental que exija respeito”, explica Iasmin Turbininha, a MC feminina mais popular no Rio. Ex-chapeira do McDonald’s, Iasmin é lésbica assumida. Criada pela avó, virou arrimo de família: chega a fazer cinco apresentações por noite. Ela é muito tietada: “Faço 200 selfies por madrugada”. Para adquirir suas peças Gucci (só originais), ela não tem problema: a MC fatura 50 000 reais por mês. “O DJ tem de respeitar gay, heterossexual, favelado, playboy ou patricinha: todo mundo quer descer até o chão”, diz.
Os bailes funk nasceram nos anos 80 nas favelas do Rio. O morador colocava uma caixa de som na rua, as pessoas se reuniam e acontecia a festa. Era uma diversão gratuita para os jovens pobres. Ao longo dos anos, o negócio ficou mais profissional — e as facções criminosas, que não são amadoras, passaram a controlar absolutamente tudo: quem canta, quem entra e quem vende bebida (ou drogas). No Baile da Gaiola há sistema de som integrado, com dezenas de potentes caixas acústicas espalhadas pelas ruas. No Baile da DZ7, de Paraisópolis, área dominada pelo PCC, o aparato musical é menos profissional. Há outras diferenças expressivas entre os pancadões do Rio e de São Paulo (veja o quadro abaixo). Na DZ7, cada um liga o som como quiser em carros estacionados na rua. É um caos. Alguns usam energia elétrica de residências para plugar seus alto-falantes. Os moradores sofrem em silêncio — ou tentam tirar algum proveito de morar no olho do furacão. “O tráfico gosta dos bailes para vender drogas. Mas não posso reclamar. Já que não consigo dormir de quinta a domingo, abri um bar na garagem”, conta um vizinho do DZ7.
As festas também atraem público endinheirado. No Baile da Gaiola há excursões da classe média de cidades como Juiz de Fora e Petrópolis. “Também tem gente de Ipanema, Leblon, Laranjeiras”, diz Rennan da Penha. O baile virou tema de música de Nego do Borel. Seu criador hoje é requisitado para até dez shows por noite e fatura 100 000 reais ao mês. A recém-instaurada tolerância do funk impulsionou coletivos de dançarinos gays, alguns dos quais têm patrocínio de marca de cerveja e atuam em festas de bairros nobres do Rio e de São Paulo. “O funk nasceu marginalizado e precisa respeitar minorias. E o mercado não é bobo: respeita quem tem dinheiro, e isso inclui os gays”, explica Rômulo Costa. Como diz a gíria do meio: o babado é forte.
Mesmo ritmo, outra dinâmica
Das drogas à “higiene”, as semelhanças e as diferenças entre os bailes funk paulistanos e cariocas
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br