O escritor russo Lev Tolstói (1828-1910) é daquelas figuras que despertam curiosidade não apenas por sua obra totêmica (bastava o monumental Guerra e Paz, mas ele fez muito mais). O autor protagonizou também uma vida pessoal interessantíssima: à maneira de um proto-hippie, foi um fazendeiro pacifista, anarquista cristão, vegetariano e criador de escolas para crianças camponesas. É justamente o encontro da obra com o homem por trás dela que sobressai no livro Tolstói & Tolstaia, volume que reúne um conto e um posfácio do autor, duas novelas de sua mulher, Sófia Tolstaia (1844-1919), e dois ensaios instrutivos a respeito do casal, assinados pelo professor da Unicamp Mário Luiz Frungillo e pelo tradutor, Irineu Franco Perpetuo.
O texto de Tolstói, Sonata Kreutzer, já tinha sido editado no Brasil e é um dos seus contos mais controversos, com um personagem que nutre ciúme doentio pela sua jovem e bela esposa, torturando-a psicologicamente. Já os escritos de Sófia são inéditos em português e relativamente “novos”, uma vez que foram descobertos na Rússia poucos anos atrás. De Quem É a Culpa saiu à luz em 1994, e Canção sem Palavras, em 2010.
Em conjunto, essas obras ligeiras descortinam para o leitor os bastidores de um célebre casamento da literatura — com direito a trocas de farpas conjugais. Quando Tolstói publicou seu conto, em 1889, ele já era um influencer, por assim dizer, no mundo das letras da época e seus textos eram ansiosamente aguardados. Na França, Émile Zola chamou a obra de “pesadelo nascido de uma imaginação doentia”. Nos Estados Unidos, o conto foi proibido. Em sua terra natal, a tradicionalista Rússia, a Igreja Ortodoxa classificou a Sonata Kreutzer como “motim contra o casamento na Igreja”, além de denunciar seu autor por supostamente propalar uma “noção deturpada do amor”.
Apesar dos boatos em seu tempo, pouca gente sabia que a história criada por Tolstói é autobiográfica. O detentor do ciumento doentio que defendia a abstinência sexual até dentro do matrimônio é o próprio escritor. E a coitada (ou sortuda, vai saber) da esposa que passou a dormir sozinha todas as noites até o fim do casamento era Sófia. Com De Quem É a Culpa?, veio à tona o outro lado da história. Afinal, o subtítulo é o mais direto possível: A Respeito da Sonata Kreutzer de Lev Tolstói. Trata-se de uma DR? Sim, e das boas! Com refinados voos literários e um mergulho na vida íntima do casal — que, de tanto instigar a imaginação do público, inspiraria retratos ficcionais como o filme A Última Estação (2009), com Christopher Plummer no papel do autor russo e Helen Mirren encarnando Sófia.
Assim como o protagonista de seu conto, Tolstói também se casou com uma mulher mais jovem (a diferença de idade entre eles era de dezesseis anos), inteligente e bela. Rosamund Bartlett, biógrafa do autor, conta que Sófia era uma esposa exemplar, ótima mãe e ajudante do escritor — ela copiava seus textos para uma letra legível, corrigia manuscritos e fazia sugestões para melhorias. É improvável que Sófia tenha traído seu marido, mas as crises de ciúme e os acessos de raiva de Tolstói foram reais.
Sófia poderia ter feito um relato pessoal, mas optou pela ficção para rebater o conto autobiográfico do marido. Ganham os leitores e a literatura, pois ela revela-se uma exímia narradora, que sabe rebater com elegância as desconfianças de Tolstói a respeito de sua suposta infidelidade com um músico. Na novela Canção sem Palavras, Sófia volta à mesma história, mas com personagens diferentes. E acrescenta ao debate o poder da música sobre o comportamento humano. Nesse ponto ela concorda com Tolstói, que descreve o auge do ciúme de seu alter ego no momento em que ele vê sua mulher tocar a Sonata Kreutzer, de Beethoven, com o músico. Não sem alguma razão e remoendo-se em dores de corno imaginárias, o protagonista retrata a peça musical (cujo primeiro movimento tem andamento semelhante ao de uma relação sexual, iniciando leve, agitando-se, explodindo e desacelerando) como força capaz de liberar desejos entre dois amantes.
Na vida real, houve uma amizade entre a pianista amadora Sófia e o músico Serguei Tanêiev. Pode ter havido interesse, mas não houve adultério; Tanêiev era gay. É, Tolstói sabia do que estava falando ao escrever a famosa frase de abertura de seu romance Anna Kariênina. “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo.”
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799
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