Biografia examina vida do historiador Eric Hobsbawm, ídolo da esquerda
Intelectual se equilibrou entre o brilho intelectual e a defesa do indefensável
Já avançava por mais de 200 páginas do caudaloso livro do acadêmico inglês Richard J. Evans quando fui atropelado por um trecho: “Em junho (de 1950), Muriel admitiu que tinha um amante; mas nem assim Eric se sentiu magoado; ficou mais preocupado pelo homem não ser membro do Partido Comunista do que com o adultério da esposa”. O marido traído é Eric Hobsbawm, um dos mais influentes intelectuais do século XX e dono de uma trajetória tão fascinante que quase não cabe na biografia escrita por Evans. Eric Hobsbawm — Uma Vida na História retrata a longa jornada humana — o intelectual morreu em 2012, aos 95 anos — de uma personalidade genial envolta em grandes eventos do século passado. Uma existência também marcada, porém, por fragorosos enganos.
Nascido no Egito, em 1917, Hobsbawm viveu com sua família judia em Viena antes de mudar-se para Berlim. Encantou-se pelo comunismo em meio à ascensão nazista. E nunca mais abandonou suas convicções marxistas, substituindo a errática identidade familiar pelo aconchego promovido pelos companheiros de partido. Também transformou algumas de suas características pessoais, reveladas pelo título de um dos capítulos (“Feio como o pecado, mas que cabeça”), em algo charmoso. Como se nos dissesse que a pobreza da infância e sua pouco apreciada aparência foram sublimadas por sua erudição comunista. E foi nisso, um intelectual comunista, que Hobsbawm se transformou quando se instalou na Inglaterra, onde se formou em história, por Cambridge, serviu ao Exército durante a II Guerra e construiu uma vasta e respeitada obra. Ainda foi fundador de duas das mais importantes revistas acadêmicas de todos os tempos, a Past & Present e a New Left Review, por onde passaram autores fundamentais da historiografia marxista britânica, como Edward Thompson e Christopher Hill.
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Boa parte dessa história é conhecida. A novidade apresentada por Evans é o modo como Hobsbawm se equilibrou entre os inúmeros galhos que formavam sua vida (aliás, Hobsbawm significa “árvore frutífera”). Tal qual um pêndulo, o autor do clássico A Era das Revoluções oscilou entre a singularidade e a generalização capaz de lhe oferecer algum sentido de pertencimento. Assim, o judaísmo, em princípio pouco relevante, foi fundamental para sua oposição ao nazismo. Do mesmo modo, sua fidelidade ao Partido Comunista foi relativizada quando os horrores do stalinismo foram revelados. Mas também justificou e condenou, concomitantemente, os crimes soviéticos nas invasões da então Checoslováquia e Hungria.
Ou seja: Hobsbawm buscava um difícil equilíbrio entre a fidelidade às posições ditadas pelo Partido Comunista e o apego às suas idiossincrasias. Condenava os caminhos que alguns intelectuais marxistas tomavam nos anos 60, como Herbert Marcuse e sua aproximação da psicanálise com a revolução. Buscou, por outro lado, formas originais de abordar as noções de classe e os novos agentes dessa mesma utopia revolucionária. Ficou entusiasmado com o fenômeno do “banditismo social”, o que talvez explique por que gostava tanto do Brasil.
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Hobsbawm enxergava na América Latina um local privilegiado para a ascensão de uma nova consciência de classe, antessala para a transformação social por meio da revolução. Ele esteve por aqui em muitas ocasiões e ainda exerce fascínio sobre brasileiros com alguma erudição. Era amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma rápida olhada na bibliografia de cursos de história, do ensino médio ao superior, comprova sua condição de ídolo pop entre nós. Mesmo em seu cabotinismo, o ex-presidente Lula, na apresentação que faz no livro, nos revela essa popularidade.
Hobsbawm se manteve ambíguo também em questões pessoais. Sentia-se cidadão britânico, assim como seu pai. Mas, ao escrever em seu diário, o fazia em alemão, língua da mãe. Até o jazz, paixão relacionada à fase de sua vida composta de breves amores regados por muito álcool, foi tema de inúmeros artigos escritos sob o pseudônimo de Francis Newton. Dessa racionalização nasceu o brilhante A História Social do Jazz, livro dos mais conhecidos de seu vasto catálogo.
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A ambiguidade revela-se, ainda, pela reação inusitada à traição da primeira esposa: sua vida amorosa subordinada à posição ideológica, ainda que tenha levado anos para superar a separação. Tempos depois, casou-se com Marlene Schwarz e teve um casal de filhos. Foi nesse período de estabilidade familiar que viveu seus dias mais produtivos e lucrativos. Trabalhou nos EUA financiado pela Fundação Rockefeller, comprou uma ampla casa em Londres e contratou um advogado para fazer seu testamento. Tudo bem burguês.
Afinal, era inteligente e viveu o suficiente para perceber que suas previsões amparadas no marxismo eram derivadas muito mais de desejo do que de seus estudos. Talvez como John Lennon — cujo sucesso Hobsbawm achava que seria efêmero —, em certo momento da vida virou herói da classe trabalhadora. A biografia de Hobsbawm prova que é possível ter uma obra significativa e uma vida brilhante mesmo estando quase sempre errado.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744
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