Em outubro de 1899, em meio à Segunda Guerra dos Bôeres, um peculiar correspondente inglês chegava à África do Sul. Descendente do duque de Marlborough, filho de um importante político conservador da Inglaterra vitoriana, ele embarcara em Londres levando seis caixas de vinho tinto, champanhe e destilados. Já havia participado, então, de importantes conflitos militares em três lugares — Cuba, Índia e Sudão —, tanto em batalha quanto como correspondente de jornais. Na África do Sul, estava no trem que sofreu uma emboscada dos bôeres e liderou a evacuação do maior número de homens, mas foi capturado. Preso, protagonizou uma fuga impressionante, tendo de percorrer 500 quilômetros saltando para subir e descer de trens, vagando sem mapa em busca de um território neutro. Quando chegou a Durban, território britânico, foi aclamado como herói.
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É fácil supor que a descrição dos feitos da juventude de Winston Leonard Spencer-Churchill poderia ser a de um personagem de ficção, uma dessas figuras cinematográficas cuja aura heroica é temperada pelo pendor para as polêmicas e a personalidade marcante. Tudo na vida do filho de lorde Randolph Churchill, inábil mas atuante político de família aristocrática, e de Jennie Jerome, rica socialite americana, parece ter sido grandioso e retórico a um só tempo. E até aqui ainda nem se mencionou sua façanha mais célebre — a de ter sido o homem que salvaria o mundo do nazismo. Churchill: Caminhando com o Destino, a colossal biografia de 1 200 páginas assinada pelo historiador britânico Andrew Roberts, traz ao leitor a vida desse personagem de modo pleno, com toda a grandeza, suas conquistas, seu brilho pessoal e seu talento retórico e literário — mas também seus fracassos, que foram muitos e tremendos, sua brutalidade e suas inúmeras contradições.
Algumas dessas contradições, aliás, o acompanham desde o berço: nascido em 1874 em uma importante família da elite aristocrática inglesa, o jovem Churchill cresceu e formou toda a sua sensibilidade e visão de mundo no esplendor da Era Vitoriana, o que equivale a dizer: no momento que o Reino Unido da rainha Vitória atingia seu zênite como Império, estendendo-se por extensas porções do globo. Churchill foi, a vida inteira, um convicto defensor do Império britânico como força civilizadora, o que o levou não só a lutar nas guerras coloniais quando jovem: foi um empedernido inimigo da autonomia e da independência da Índia, e manifestava o típico sentimento de superioridade das elites europeias.
Atuando na política do século XX adentro, contudo, o mesmo Churchill promoveu uma atualização decisiva da política vitoriana, tornando-se um inarredável defensor da democracia liberal e das reformas sociais, de modo a levar os benefícios das modernas nações europeias às populações mais necessitadas. Lutou para limitar o poder de veto da Câmara dos Lordes à criação dos pilares fundamentais de um Estado de proteção social, seja atuando junto ao primeiro-ministro liberal David Lloyd George, seja como primeiro-ministro já nos anos da II Guerra. Churchill daria inclusive seu apoio à criação do mítico National Health System, o sistema de saúde público universal dos britânicos.
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Tais contradições envolviam sempre as mais fundamentais questões políticas, sociais e culturais de seu tempo. Na política, abandonou o lado dos tories, o Partido Conservador, bandeando-se para o Partido Liberal, em nome da defesa do livre-comércio. Retornou, no entanto, ao seio dos tories para finalmente chegar ao cargo de primeiro-ministro, o mais alto da política inglesa — não sem antes, é claro, experimentar repetidas vezes o fracasso e o isolamento.
Seu sentimento de grandeza — uma intuitiva convicção de que o destino o havia marcado — acompanhou-o pela vida toda. Em 1891, aos 16 anos, Churchill dissera a um amigo que, no futuro, “Londres estará em perigo e, na alta posição que estarei ocupando, caberá a mim salvar a capital e salvar o Império”. Mas, apesar das posições que atingira, conheceu a derrota da operação militar em Galípoli, durante a I Guerra Mundial, ou a péssima condução do Tesouro inglês, nos anos 1920. Isso serviria a seus inimigos de munição para mantê-lo fora do jogo. Perto dos 60 anos, Churchill passaria quase toda a década de 30 longe do governo, em isolamento quase absoluto e francamente ridicularizado — bem quando se anunciava o momento mais dramático da história da Inglaterra e da humanidade.
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O destino, contudo, recolocou Churchill no caminho da civilização. O homem que vivera um desterro político em sua própria nação passou anos alertando seus compatriotas, solitário, sobre a mais terrível ameaça que o mundo viria a enfrentar: a Alemanha nazista de Adolf Hitler. Foram seus discursos, seu estado de alerta sincero, convicto e inabalável para o perigo que a democracia e as liberdades corriam que mudaram os rumos da história. Do apaziguamento covarde, servil a Hitler, a Inglaterra voltou a preparar-se para o enfrentamento — até hoje, uma das páginas mais honrosas da história universal.
Andrew Roberts narra essa vida de maneira magistral, impondo-se como leitura obrigatória. E o fato de que exista essa história para contar é uma conquista da democracia: sem Winston Churchill, o homem-monumento, ela talvez não frutificasse como frutificou no pós-guerra. É melancólico saber que sua estátua em Trafalgar Square, em Londres, hoje tenha de ser protegida por um caixote metálico, a salvo da intolerância dos que se arvoram em cancelar figuras históricas e de outros novos inimigos da liberdade. Que Churchill continue sendo um farol contra toda forma de escuridão.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701
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