Os animadores da Pixar podem não ser deuses, mas também têm de criar seu próprio mundo a partir do zero. Que o diga a equipe responsável por Os Incríveis 2, continuação do sucesso de 2004 dirigida por Brad Bird. Apesar de se tratar de uma sequência, iniciada do mesmo ponto onde termina o primeiro filme, pouca coisa sobreviveu do longa original. Para começar, nem existem mais os softwares usados pela equipe do estúdio.
A mudança na tecnologia permitiu a Brad Bird explorar os múltiplos poderes do bebê Zezé, o caçula que se revela capaz de se metamorfosear em diabinho, se clonar em vários, emitir raios laser e gerar fogo — por exemplo. O filme exibe cenas sofisticadas quando Zezé faz fogo, com detalhes como olhos incandescentes e chamas que flutuam sobre seu corpo sem obscurecer as expressões. É uma diferença e tanto, que contribui para tornar o bebê a maior atração da nova aventura.
Outra atração do filme é a troca de papéis entre Helena e Beto – papai fica em casa cuidando das crianças, mamãe vai trabalhar e salvar o planeta. Embora secundários no clã Pera, Violeta e Flecha agradam as crianças. “Brad Bird queria mudar muita coisa, mas os personagens tinham de parecer os mesmos”, diz a animadora Kureha Yokoo.
Para fazer tudo igual, ainda que diferente, há um enorme trabalho envolvido. Os criadores da Pixar são arquitetos, designers de objeto, figurinistas, decoradores e gente capaz de recriar a natureza. Tudo o que está na tela foi desenvolvido a partir do nada: cada personagem, cada ambiente, cada objeto, móvel, figurino, textura de pisos e paredes, prédio, planta, rua, rolinho primavera. Para isso, um time vai a campo fazer pesquisas para contribuir com ideias. Neste caso, como o filme tem um ar anos 1950, alguns visitaram a cidade de Palm Springs, na Califórnia, que foi o refúgio favorito de astros e estrelas dessa época e que reúne muitas casas com o estilo modernista do meio do século XX. Saiu de lá, por exemplo, a inspiração para a paleta de cores e o piso da nova casa dos Pera, de granilite com desenhos de folhas. “Eles tentaram trazer o exterior para o interior”, explicou a artista responsável por texturas Bryn Imagire.
A pesquisa também passa por fotos de ícones como Paul Newman, que inspirou o guarda-roupa masculino de Beto, o Senhor Incrível, e uma combinação de Mary Tyler Moore, Marilyn Monroe e Audrey Hepburn para Helena Pera, a Mulher Elástica. Para a estilista Edna Moda, que faz os uniformes dos Incríveis e é uma mistura de alemães e japoneses, Bryn Imagire foi buscar referências em estilistas como Rei Kawakubo e Eiko Ishioka. Deanna Marsigliese, por sua vez, ficou encarregada de vestir a multidão de figurantes necessária a um filme que se passa em uma grande cidade. Com ajuda da tecnologia, ela criou variações sobre as mesmas peças, fazendo versões de um mesmo casaco, por exemplo, lançando mão de detalhes como mangas de comprimentos diferentes, cores ou estampas diversas.
E depois o departamento liderado por Fran Kalal distribuiu, no caso das mulheres, os modelitos em sete tipos de corpos diferentes. Os computadores ficaram encarregados de multiplicar as pessoas, que depois podiam ser colocadas nas cenas. Era preciso pensar em cada pequeno gesto: como a roupa estica ou dobra no corpo de acordo com os movimentos, por exemplo. Para estudar como seria o movimento das peças no corpo, Marsigliese, dona de uma coleção de peças vintage, filmou a si mesma andando em uma esteira com figurinos da época.
A produção de um filme desses segue uma série de etapas. Depois de criados os desenhos que definem as formas, escultores e arquitetos tornam cada item tridimensional, criando uma espécie de depósito virtual com tudo que é tipo de coisa. Em seguida, entram em ação os decoradores, que vão a esse armazém virtual e dispõem móveis e objetos nos ambientes vazios, transformando-os numa sala de estar, escritório ou restaurante. Então, é a vez dos responsáveis por cores e texturas, que estudam também como cada item reage à luz, por exemplo.
Tem também um pessoal por criar a cidade ao fundo, o céu, as nuvens. Um departamento faz ajustes, acrescentando detalhes como grama e pedras na rua. E aí vem a equipe de tecnologia para dar uma limpada em tudo o que não é necessário na cena e minimizar o trabalho dos computadores, que precisam processar todas essas imagens.
Mesmo assim, às vezes é preciso jogar tudo fora. Em Os Incríveis 2, por exemplo, a nova casa dos Pera estava prontinha quando uma mudança na história, que evolui o tempo inteiro, provocou uma transformação quase total do projeto, que foi de 215 metros quadrados para 1.850 metros quadrados e incorporou maluquices como cascatas internas e chão móvel. Em vez dos seis meses originais para criar a primeira casa, os artistas tiveram três semanas.
No caso de uma cena de ação como a da tentativa de Helena, a Mulher Elástica, de salvar as pessoas num trem de alta velocidade desgovernado, a equipe precisou quebrar a cabeça para saber como ela ia chegar até o local, usando sua nova moto, que se adapta ao seu corpo mesmo quando ele se estica, e como ia parar a locomotiva usando suas habilidades. Para criar a super-moto, que se separa em duas nos momentos em que ela estica, o time precisou estudar detalhes como o encaixe das partes do veículo, para fazer com que fosse crível, mesmo sendo um projeto impossível de acontecer na realidade.
Também foi preciso estudar física para estabelecer a velocidade do trem e da moto para pensar na distância entre os prédios que ela usa como trampolim. Um computador faz simulações baseadas na física do mundo real de elementos como faíscas e fumaça, cabendo aos artistas ajustar isso para tornar o filme mais atraente visualmente, de forma que funcione para a história.
Ao todo, a produção de um filme como Os Incríveis 2 envolve centenas de profissionais durante quatro ou cinco anos. É um bocado de trabalho para um tipo de produção que muita gente enxerga só como diversão para as crianças.