Celebridades digitais, filhos pequenos de famosos faturam até R$ 300 mil
Crianças estrelam posts patrocinados e inspiram debate sobre os limites da exposição de meninos e meninas nas redes sociais
Resultado de um aguardado e bem-sucedido processo independente de fertilização in vitro, Enrico Bacchi já existia no mundo virtual antes mesmo de ter uma certidão de nascimento. Empolgados com a gestação, fã-clubes da futura mamãe, a modelo Karina Bacchi, fizeram perfis em redes sociais em homenagem ao futuro bebê. Os primeiros passos do garoto seriam tão compartilhados quanto a gravidez de Karina. Para ter controle da situação e se tornar ela própria a responsável por divulgar conteúdo sobre a criança, a modelo criou a arroba oficial do filho no mesmo dia em que deu à luz. Hoje com 2 anos e 3 meses de pura fofura, Enrico soma 2,5 milhões de seguidores no Instagram (o público cresce ao ritmo de 3 100 novos fãs por dia). “Ele é a maior realização da minha vida, e as pessoas o receberam com muito carinho”, diz a mãe. “Eu me senti na obrigação de retribuir essa chuva de amor.”
O DNA da mamãe transmitiu a ele os olhos azuis e uma boa parte do público que já a acompanha pelas redes sociais (Karina tem quase 7 milhões de seguidores no Instagram). Com tanta gente interessada na rotina do menino, logo a exposição virou um negócio. O bebê é atualmente um grande anunciante de roupas infantis. Um pacote de posts patrocinados com o garoto custa a partir de 30 000 reais. “Todo trabalho respeita o tempo e a vontade dele”, garante Karina. “Por esses dias, o Enrico acordou às 4 e meia da manhã e pediu para fazer foto, uma das atividades que mais ama.” Quando a agenda exige a presença do menino em um evento, como o lançamento de uma nova coleção, ele aparece apenas no fim para posar para as fotos. Nos ensaios feitos em estúdio, Enrico é o primeiro a ser clicado para ser liberado mais cedo. Karina, é claro, derrete-se com o resultado das imagens: “Ele não é lindo?”.
A corujice dos pais por seus rebentos ganhou uma escala inédita na era digital. O fenômeno deu origem a um termo próprio: “sharenting”, a soma de share (compartilhar) e parenting (criação). Segundo uma pesquisa da empresa europeia de segurança digital AVG, três de cada quatro crianças com menos de 2 anos têm sua imagem publicada na internet. A idade do filho interfere no ímpeto pela busca por curtidas, como mostra uma pesquisa com 1 300 pais americanos feita pelo aplicativo Local Babysitter. Os pais de filhos com menos de 6 anos postam 2,1 imagens por semana; dos 7 aos 13 anos, detecta-se uma queda na corujice: 1,9 conteúdo por semana; quando o filho completa 14 anos, a postagem se reduz a 0,8.
No caso dos filhos de famosos que puxam a onda das celebridades mirins do mundo digital, o interesse do público também segue a mesma lógica: quanto mais novinhos, mais curtidas. Valentina Muniz, filha da modelo Mirella Santos e do humorista Wellington Muniz, o Ceará, nasceu em agosto de 2014. No começo, ela abrilhantava as redes sociais dos pais e lhes rendia chuvas de likes. Mas, como na internet o que é postado sai do controle, fãs criaram perfis para replicar imagens e vídeos de Valentina. Diante disso, o casal decidiu abrir a conta oficial meses antes de a filha completar 2 anos. Agora com 5 anos, a menina soma 2,7 milhões de seguidores no Instagram. Valentina acostumou-se a ter uma câmera de celular voltada para seu rosto a cada passo que dá. No canal do YouTube de Mirella, o público assiste pelo smartphone ao dia a dia da criança, como a nova decoração do quarto (cama grande, inicial do nome colocada na parede e minicamarim) e a visita do Papai Noel na noite de Natal (a filha deu bronca na mãe por sentir-se dedurada quando Mirella disse ao bom velhinho que ela teria se comportado “mais ou menos”). Uma campanha com Valentina e os pais varia de 100 000 a 300 000 reais, a depender do número de posts e diárias de estúdio.
Davi Lucca, de 8 anos, filho de Neymar com a modelo Carol Dantas, deixou de ser coadjuvante nas redes sociais dos pais para andar com os próprios pés na internet em 2015, quando seu Instagram foi inaugurado. O menino não faz propaganda em sua conta pessoal, mas “participa” de campanhas ao lado dos pais. Sua mãe, aliás, registra aumento de mais de 100% de likes quando posta foto com o filho. A rotina à la reality show também encontra terreno fértil com a apresentadora Sabrina Sato, que escolheu adotar outro caminho: ela não criou conta própria para a filha, de 11 meses, mas estrela dezenas de propagandas com a criança. Zoe, aliás, aparece em produções caprichadíssimas de marcas como Dolce & Gabbana e Burberry.
Em décadas passadas, antes da existência das redes sociais, o mais comum era os filhos de celebridades fugirem dos paparazzi, como ilustra bem a história de Sasha. Em 1998, o nascimento da menina rendeu uma matéria de dez minutos no Jornal Nacional. A filha de Xuxa e Luciano Szafir cresceu — e detestou ser seguida por fotógrafos a caminho da escola. Ela passou a adolescência tentando se esconder e relutou em ter uma rede social — só abriu perfil em 2016. Agora, aos 21 anos, mudou de postura e decidiu ganhar a vida como influenciadora digital.
O advento das celebridades mirins da era digital esquentou o debate que existe em torno da exposição de crianças nas redes. A discussão fica mais viva a cada momento em que uma supercelebridade dá à luz. Ao postarem imagens da filha recém-nascida, Clara Maria, os atores Tata Werneck e Rafael Vitti foram criticados por alguns. Tata respondeu de forma irônica em uma legenda da foto, como se a menina tivesse escrito: “Chega de exposição. Vocês estão querendo ‘publis’ às minhas custas. Quando eu fizer Malhação, vou expor toda a verdade para a galera do Vídeo Show”. Mas há, de fato, filhos que confrontam os pais. Em março, a atriz Gwyneth Paltrow postou uma foto de Apple, de 14 anos, com uma máscara de ski. A garota se sentiu invadida e deu uma bronca em Gwyneth nos comentários da imagem: “Mãe, já conversamos sobre isso. Não poste nada sem meu consentimento”.
Por mais irresistível que seja publicar fotos de filhos, os pais têm de encontrar um limite. “Se uma criança tem até 2 anos, seus responsáveis precisam decidir em seu nome sem esquecer de evitar conteúdo do qual a criança se envergonhe no futuro, como imagens em que aparece tomando banho”, diz a VEJA Joanne Orlando, professora de efeitos sociais dos usos da tecnologia em crianças da Western Sydney University. De acordo com a especialista, a partir dos 4 anos a criança deve ser consultada se gostou da imagem e autorizar a sua publicação. Para Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, como a criança não tem a personalidade formada, muitas vezes replica comportamentos como um modo de ser aceita — imita poses, roupas e a maneira de falar. “Pode-se criar um padrão de expressão voltado para a aprovação alheia”, alerta. Karina Bacchi diz estar ciente dos problemas. “Ao fazermos a escolha de postar, temos de assumir o risco do que isso pode acarretar para a frente. Hoje, sei que ele adora e é feliz.” Até lá, segue faturando com o sharenting: a modelo acaba de estrear um reality show no YouTube que mostra a rotina de sua família.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660