Cientista revela como “ensinou” inteligência artificial a copiar Rembrandt
VEJA conversou com o holandês Robert Erdmann, estudioso à frente do projeto que usou algoritmo para recuperar parte perdida da obra-prima 'A Ronda Noturna'
Em 1642, quando o mestre holandês Rembrandt van Rijn produziu a obra-prima A Ronda Noturna, o conceito de inteligência artificial não existia nem sequer na literatura – com a ciência ainda incipiente e sem qualquer vislumbre tecnológico no horizonte, ninguém ousaria prever que, quase quatro séculos depois, uma máquina reproduziria os traços do pintor para reconstituir a parte perdida de sua obra, recortada sem piedade para “caber” na parede da prefeitura de Amsterdã, para onde foi transferida em 1710. Mas foi justamente isso o que aconteceu em 2021. “Demorou menos de um dia para ensinar o programa a traduzir o estilo de Rembrandt. É como se o computador fosse para a escola de artes”, explicou a VEJA Robert Erdmann, cientista do museu holandês Rijksmuseum, à frente da iniciativa.
Apesar do aprendizado ter sido rápido, o caminho até este ponto foi longo e só foi possível graças a uma pequena cópia do quadro feita pelo pintor Gerrit Lundens antes de o original ser recortado. Munido da miniatura da obra, Erdmann foi capaz de identificar os desenhos ceifados pelo corte e bolou um plano para recuperá-los na escala original. Mas a tarefa não era simples. Apesar de reproduzir com precisão os elementos do quadro de Rembrandt, até mesmo o número de botões em cada casaco, o estilo de pintura, as cores e os ângulos de Lundens não batiam com os do gênio holandês. “Nós poderíamos simplesmente ampliar a cópia, imprimir as partes que foram cortadas no original e colocá-las ao lado do quadro em exposição. As figuras não se complementariam e ficaria horrível”, explica.
Para resolver o problema, o cientista apelou para uma tecnologia de ponta chamada Rede Neural Convolucional, um algoritmo de aprendizagem profunda capaz de identificar e diferenciar imagens complexas, como uma espécie de Google tradutor visual. O processo foi dividido em três partes e levou cerca de dois anos para ser concluído. Na primeira delas, a inteligência artificial foi apresentada às duas pinturas, e identificou mais de 10 000 pontos em comum entre elas. A análise descobriu também que a cópia foi feita sob uma perspectiva lateral, o que acabou distorcendo a geometria original. Na segunda fase, o erro foi corrigido: a tecnologia alinhou os elementos da cópia de Lundens à geometria original, traçando paralelos diretos entre as duas.
Com isso feito, o programa enfrentou o seu maior desafio: reproduzir, com o estilo de Rembrandt, as extremidades ceifadas do quadro, vista por ela apenas no estilo de Ludens. “É nessa fase que a inteligência artificial entra na escola e nós ensinamos a ela como traduzir de um estilo para o outro.” Para isso, ela foi exposta a milhares de detalhes da obra copiada e seus correspondentes exatos da original.
O processo é mais ou menos como uma tradução linguística: você expõe o programa a frases em inglês e apresenta a ele a tradução em português, mas o idioma aqui são as cores, traços e texturas de cada quadro. Depois de trilhões de exemplos processados em tempo recorde, a máquina é capaz de reconhecer a “linguagem” e fazer a tradução por conta própria. “Ela foi capaz de reproduzir até as rachaduras do quadro original”, pontua Edermann.
O resultado final foi impresso em escala original e acoplado ao quadro no museu, completando a imagem. É possível acessar uma ferramenta que compara as duas imagens no site da instituição. O processo fez com que os elementos da obra retomassem a posição original pensada pelo pintor, uma característica essencial de suas obras. “Sem os elementos cortados, as figuras principais ficam no meio do quadro, e isso não é algo típico do Rembrandt. Eles parecem posados, como se estivessem presos. Mas com a imagem completa, você tem uma cena que transmite movimento”, destaca.
Apesar de bastante crível, e muito mais fiel do que a cópia manual, o trabalho não é perfeito. “O computador não é capaz de duplicar a genialidade de Rembrandt, pode apenas se aproximar dela”, analisa o cientista, que é categórico quanto à substituição de artistas pelas máquinas: “há algo sobre a forma como os artistas pintam que capta profundamente o que é ser humano, e os computadores nunca vão ser capazes de reproduzir isso.”
Mesmo com a limitação de talento do robô, o sucesso da iniciativa abre caminho para que a tecnologia possa revolucionar a arte no futuro. Embora seja improvável que outra obra de arte recortada tenha os pedaços perdidos para sempre e uma cópia mostre como ela era antes, Edermann explica que a inteligência artificial poderia ser aplicada na conservação de obras de arte e simulação de restaurações.
“Ainda é cedo para isso, mas é possível que se ensine o sistema a imaginar uma restauração antes que ela seja feita, o que nos ajudaria a tomar decisões sobre como intervir em uma obra”, exemplifica. Outra uso possível é adotá-la para atestar a originalidade de um trabalho. Mas tal uso embute um risco: “Se eu posso construir um sistema para certificar a originalidade de algo, um plagiador pode construir outro que engane o meu sistema simulando uma obra original. É uma corrida sem fim.”