Coleção de peças de Freddie Mercury ilumina uma vida sem concessões
Uma estrela do rock que podia ser traduzida pelo que juntava
A crítica esnobava a banda britânica Queen no auge do sucesso, nos anos 1970 e 1980 do século passado. Mas o público a adorava e seus integrantes não estavam nem aí para o muxoxo dos supostos intelectuais bem pensantes — o quarteto apostava na energia, na voz, no brilhantismo e no jeito piegas de Freddie Mercury. O tempo, compositor de destinos, tratou de dar razão aos roqueiros. Há poucos casos, na história da cultura popular, de um renascimento tão contundente quanto o do Queen — e em especial o de seu líder, que morreu em decorrência da aids em 1991, aos 45 anos. Na trilha do megassucesso do empolgante filme Bohemian Rhapsody, de 2018, epílogo daquele mundo de salas de cinema cheias como o conhecíamos antes da pandemia, Mercury reapareceu na pele do extraordinário ator Rami Malek — Oscar de melhor ator em 2019 — e está agora mais vivo do que nunca. Pergunte a uma criança o nome de um rock star e a resposta virá na ponta da língua: Freddie Mercury.
Se fosse preciso haver uma comprovação do sucesso do personagem, do ponto de vista econômico, eis aqui uma oportunidade: a Sotheby’s de Londres levará ao martelo uma extraordinária coleção com centenas de objetos de Mercury, cuidadosamente preservados em sua mansão no bairro de Kensington — retrato à perfeição de um modo de vida incansável. As vendas serão encerradas apenas em 7 e 8 de setembro, mas a memorabilia já pode ser visitada, exposta como num museu. O destaque é a coroa de veludo, bijuterias e strass, imitação perfeita, o pastiche dos pastiches, do cocuruto que o rei Charles levará à cabeça em 6 de maio (leia na pág. 52) — usado nos palcos na derradeira turnê do Queen, em 1986. A estimativa de valor: pouco mais de 500 000 reais. Outro chamariz é a jaqueta militar, no estilo do Sargent Pepper dos Beatles, que Mercury vestiu em seu ruidoso aniversário de 39 anos, numa festa em Munique do barulho. Imagina-se que seja comprado por algo em torno de 95 000 reais. Há ainda trecos prosaicos, como o telefone de baquelite bege dos anos 1980 e o pente de prata da Tiffany usado para o mítico e cultivado bigode. “O acervo de Freddie Mercury é uma manifestação da criatividade de um homem extraordinário, de bom gosto e olho infalível para a beleza”, diz David MacDonald, diretor da Sotheby’s. Mercury, ressalve-se, era assíduo frequentador de leilões. Ex-estudante de design gráfico, sabia distinguir o belo do feio, o insosso do fundamental. “Quero levar uma vida vitoriana, cercado por coisas esplêndidas”, chegou a dizer certa vez.
O interesse pelo cotidiano íntimo de personalidades é a um só tempo interesse artístico e passeio pela alcova de gente famosa, especialmente de nomes dramáticos do showbiz (não por acaso, as parafernálias de Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Michael Jackson foram rapidamente negociadas). Mas há também, ao adquirir coleções, uma busca inata do ser humano. Na definição do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940): “Talvez o motivo mais recôndito do colecionar possa ser circunscrito da seguinte forma: ele empreende a luta contra a dispersão”. Eis aí um inesperado legado de Freddie Mercury — e God Save the Queen.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840