A devoção de Jean-Luc Godard ao cinema extrapolava limites — inclusive os da lei. “Cheguei a roubar para poder assistir e fazer filmes”, disse o diretor franco-suíço em 2007, já sob a segurança do prestígio e da idade avançada, perto dos 80 anos. O meliante se via como um nobre Robin Hood: o butim do dinheiro que furtava, advindo de empregadores e de sua família abastada, era compartilhado com outros cineastas iniciantes. A camaradagem e a verba curta, em um mundo de desequilíbrio moral e emocional pós-II Guerra, foram as bases que sedimentaram o movimento cinematográfico francês da nouvelle vague, a iconoclástica nova onda da qual Godard se impôs como expoente máximo nos anos 1960.
“O que é o cinema? A resposta para essa pergunta eu resumiria assim: é a expressão de sentimentos sublimes.”
Jean-Luc Godard(1930-2022)
Morto na terça-feira 13, aos 91 anos, o diretor demarcou uma linha histórica na arte de fazer filmes: depois dele, as produções seriam divididas entre aquelas fabricadas por estúdios e o cinema de autor. Se as primeiras têm por objetivo entreter e conduzir o espectador por viagens escapistas, o segundo é um convite filosófico à autorreflexão. Da quebra da quarta parede — expediente no qual o ator olha para a câmera, ou seja, para o espectador — até finais abertos e divagações sem respostas, os filmes da nouvelle vague não eram feitos para ser palatáveis, e sim digeridos com elaboração intelectual. Godard tornou-se, assim, o mestre supremo da provocação — amado pelos que viam o cinema como uma forma de arte elevada e odiado por quem o via como o pai de todos os diretores-cabeça.
Ao rasgar a cartilha dos padrões impostos até ali especialmente por Hollywood, a nouvelle vague recolocou a França em posição de glória na ebulição artística mundial. Já a liberdade de contar histórias sem amarras, de linhas cronológicas indefinidas a enquadramentos inovadores e ao uso de câmera na mão, se revelou um legado de alcance global. O cinema novo brasileiro bebeu da fonte francesa: Godard e Glauber Rocha (1939-1981), aliás, se admiravam mutuamente.
Jean-Luc Godard: História(s) da literatura
Nascido em Paris e criado na Suíça, Godard tinha uma relação conturbada com os pais, um médico e uma filha de banqueiro. O vínculo se rompeu quando ele trocou a ilustre Sorbonne pela Cinemateca Francesa, onde conheceu seu principal parceiro criativo, François Truffaut (1932-1984), e André Bazin (1918-1958), dono da revista Cahiers du Cinéma, bíblia dos cinéfilos, na qual Godard trabalhou como crítico — e de onde roubou uns trocados. Forjado nesse meio vanguardista, Godard fez filmes sobre laços humanos que não se explicam e sobre a fragilidade do status quo. Em Acossado (1960), sua brilhante produção de estreia, um ladrão procurado pela polícia tem um romance com uma americana. Quanto mais poético e abstrato Godard ficava, mais sua popularidade crescia, como atesta O Demônio das Onze Horas (1965), que fala de um criminoso em fuga das autoridades — mas, principalmente, do tédio.
Em 1985, o diretor mexeu num vespeiro religioso com Je Vous Salue, Marie, alegoria moderna sobre a mãe de Jesus. O filme foi censurado no Brasil pelo governo de José Sarney, a pedido de líderes católicos, e liberado só em 1988. Ao longo da vida, as críticas e os aplausos não distraíram o cineasta de escrever, produzir, atuar e dirigir sem descanso. Seus últimos trabalhos foram tão experimentais que mais pareciam colagens de cenas e frases. O jornal francês Libération noticiou que Godard morreu em um suicídio assistido — prática legalizada na Suíça, onde vivia. Como ele mesmo disse: “A história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem”.
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807
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