No centro de um palco minimalista, o piano branco dá início a uma balada serena e profunda. A canção introduz a estrela da noite: com um vestido longo preto e cabelo loiro alinhado, Adele é recebida aos gritos pela plateia em êxtase no show de sua badalada residência Weekends with Adele no The Colosseum, teatro do hotel-cassino Caesars Palace, em Las Vegas. Ela não espera os aplausos diminuírem para pronunciar o conhecido verso “hello, it’s me” — introdução da faixa Hello, canção que soma mais de 4,4 bilhões de reproduções entre YouTube e Spotify. Após a abertura, a cantora inglesa fala para o público: “Prometo que o show será muito mais legal do que só eu e um cara no piano”. A promessa é cumprida: ao longo de duas horas, ela terá ao seu redor telões de altíssima definição, efeitos especiais (chuva e fogo se misturam no palco na canção Set Fire to the Rain), elementos cenográficos que descem do teto sobre a plateia — além, claro, de uma afiada banda e de uma orquestra. Mas é Adele, com seu carisma pungente, que vale a noite: a cantora faz caras e bocas, conta anedotas, se abre sobre seus problemas pessoais e até deixa o palco para caminhar entre os mortais — conversa com fãs, tira selfies e distribui tchauzinhos.
De novembro passado até este sábado, 25 de março, a residência da cantora totalizou 32 shows para 4 300 espectadores por noite — um mar de quase 140 000 pessoas que equivale a três estádios lotados. Se optasse por uma turnê mundial, Adele não teria dificuldade em lotar dezenas de estádios. Mas eleger Las Vegas como lar por quatro meses tinha razões práticas e simbólicas. Ao se fixar num só lugar, garantiu a estrutura idealizada por ela e se poupou de longas e caríssimas viagens com sua equipe — sem falar que ainda embolsou 2,2 milhões de dólares por show, o maior valor pago por noite a uma cantora na história da cidade. Las Vegas também saiu no lucro. Com a presença da diva em alta no cenário pop, a cidade espantou de vez a fama de decadência que a acompanhava desde a triste história de Elvis Presley: o cantor foi atração fixa de um hotel no final da carreira, quando já afundava nos excessos que o levariam à morte, aos 42 anos, em 1977.
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O paraíso dos cassinos incrustado no deserto do estado de Nevada — e também chamado de “Cidade do Pecado” — historicamente usa de artimanhas variadas para atrair visitantes para suas jogatinas. Hoje as opções de entretenimento em Las Vegas vão dos shows musicais a apresentações de stand-up até espetáculos fixos do Cirque du Soleil. A primeira grande estrela da música a cavar trincheira por lá foi o pianista Liberace, em 1944. Até os anos 1960, a cidade recebeu personalidades masculinas notáveis, como Frank Sinatra e Tom Jones. Depois veio Elvis — e a maldição da cidade “fim de carreira” se cristalizou. Nos anos 1980, a fama de tumba da música atingiu o auge. Na época, a cantora Cher chegou a dizer que Las Vegas era um “cemitério de elefantes onde os músicos vão para morrer” — declaração dada quando a própria fez sua primeira residência por lá.
A virada da cena musical de Las Vegas veio nos anos 2000, quando jogos e apostas virtuais se tornaram uma concorrência incômoda, forçando os cassinos americanos a diversificar mais radicalmente seus negócios. O Caesars Palace, então, investiu 95 milhões de dólares na construção do Colosseum, um moderno anfiteatro feito sob medida para outra diva: a canadense Céline Dion, que na época ainda surfava na inescapável música-tema de Titanic. Entre 2003 e 2007, a cantora fez 719 shows na residência, o que rendeu ao hotel 400 milhões de dólares. “Céline mudou o jogo e trouxe uma nova era para Vegas”, disse Kurt Melien, vice-presidente do Caesars. A canadense foi seguida por Britney Spears, numa mudança paulatina da narrativa local: de refúgio dos decadentes, Vegas se transformou em palco para grandes artistas. Em 2018, com Lady Gaga, o jogo virou em definitivo. No ápice da carreira, a cantora foi atração de luxo do hotel Park MGM.
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Agora, Las Vegas vislumbra um futuro exuberante. O novo e moderno Estádio Allegiant vai receber shows de Taylor Swift e Beyoncé, além de sediar o Super Bowl 2024, evento máximo da TV americana. Em setembro, o U2 irá abrir as portas do MSG Sphere, casa de shows em formato de esfera revestida de telões de LED, com capacidade para 17 500 pessoas — uma extravagância de 2,1 bilhões de dólares. Estima-se que os ingressos vão custar a partir de 200 dólares. É um valor acessível se comparado aos de Adele: a média de 1 000 dólares por entrada foi inflacionada pelos cambistas — e os preços chegaram a absurdos 40 000 dólares. Adele reconhece o privilégio dos que podem vê-la cantar de pertinho: ela sorteia dois lugares próximos ao palco para quem está no mezanino. “Aproveitem, pois esses lugares são caros para c*”, diz, soltando um de seus usuais palavrões. A diva fez sua aposta — e tirou a sorte grande.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834
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