Compositor brasileiro reúne provas para mover ação por plágio contra Adele
O motivo seria o uso da música 'Mulheres', popularizada por Martinho da Vila
A batalha que deve chegar à Justiça britânica daqui a um mês faz lembrar a briga de Davi contra Golias, com chance, como no embate bíblico, de o mais fraco surpreender e vir a fazer história, desta vez no reino fonográfico. De um lado do ringue está a gigante (só na fama, visto que perdeu 45 quilos) Adele, 33 anos, cantora britânica detentora de quinze Grammys, um Globo de Ouro, um Oscar e uma fortuna beirando os 200 milhões de dólares. Do outro, o músico mineiro radicado no Rio de Janeiro Toninho Geraes, 59 anos, de nome pouco conhecido do público, embora seja compositor requisitado no universo do samba e do pagode. No epicentro do enrosco se encontra um dos maiores sucessos de Geraes, a música Mulheres (“Já tive mulheres / de todas as cores / de várias idades / de muitos amores”), consagrada na voz de Martinho da Vila — que ele afirma ter sido plagiada por Adele na faixa Million Years Ago, do álbum 25, lançado em 2015. “Fiquei estarrecido quando me dei conta. A melodia e a harmonia são iguais. É uma cópia escancarada”, revolta-se o compositor.
Duas notificações extrajudiciais, às quais VEJA teve acesso, foram enviadas em maio a Adele, a Greg Kurstin (coautor da canção e seu produtor), à gravadora XL Recordings/Beggars Group e ao grupo Sony Music. No documento, os advogados de Geraes sustentam que, além da linha melódica, a artista e seu parceiro “se apropriaram das primeiras notas de introdução” e as reproduziram no início, refrão e final de Million Years Ago. Entre trechos idênticos, substancialmente semelhantes e “imitativos”, as notificações contabilizam 88 compassos com indícios de cópia, somando três minutos e dois segundos, ou 87% da canção. Dos envolvidos, só a Sony Brasil emitiu resposta formal, informando que o assunto está nas mãos da gravadora inglesa e da própria Adele. “Nossa intenção era tentar um acordo, mas, diante do silêncio, recorreremos à Justiça”, diz o advogado Fredímio Biasotto Trotta.
Denúncias de plágio já envolveram nomes como Beatles, Coldplay, Michael Jackson, Bob Dylan e Roberto Carlos, mas, desde o advento das redes sociais e das plataformas de streaming musical, achar coincidências suspeitas se tornou um exercício frequente. “Antigamente, mesmo grandes sucessos demoravam a vencer as fronteiras, quando venciam. Hoje, tudo ganha visibilidade rapidamente”, diz Marcelo Castello Branco, CEO da União Brasileira dos Compositores. O sinal de alerta em relação a Mulheres, que estourou em 1995 e tem versões em francês e espanhol, surgiu por acaso. O tecladista Misael da Hora, filho do maestro Rildo Hora, responsável pela orquestração da composição, estava em uma festa quando alguém pôs Million Years Ago para tocar. “Primeiro achei que era uma versão, mas fui pesquisar e vi que o crédito não aparecia”, lembra da Hora, que avisou Toninho Geraes.
Adele não está envolvida em polêmicas só no Brasil. A faixa Hello, do mesmo álbum 25, é, para fãs do músico americano Tom Waits, cópia de Marta, de 1973. A própria Million Years Ago já foi acusada de ser parecida demais com uma composição do turco Ahmet Kaya e com Hay Amores, lançada em 2007 pela colombiana Shakira — o que leva a crer que Geraes pode ter mais imitadores mundo afora. Comprovar plágio, porém, é missão das mais ingratas, por se tratar de uma infração sem parâmetros claros. “Além de provar a semelhança, é preciso mostrar que o plagiador teve contato com a obra e agiu intencionalmente”, frisa o advogado Cláudio Lins Vasconcelos, da Comissão de Direitos Autorais da OAB-RJ. A defesa de Geraes pretende mostrar que, em busca da boa forma, Adele ficou amiga da personal trainer paulista Camila Goodis e que o produtor Kurstin é pesquisador da música brasileira.
As provas reunidas podem destronar o caso de plágio que levou Rod Stewart e Jorge Ben Jor aos tribunais (veja o quadro abaixo), nos anos 1970, como o mais emblemático envolvendo um brasileiro. Stewart admitiu ter se apropriado — deslavadamente, diga-se — de um refrão de Benjor, os dois entraram em acordo e o brasileiro passou a receber direitos autorais. Na maré de acusações recentes engrossada pela internet, a banda Radiohead jura que a cantora Lana Del Rey copiou a célebre Creep e Robin Thicke e Pharrell Williams tiveram de pagar 5 milhões de dólares aos herdeiros de Marvin Gaye por acordes idênticos em Blurred Lines. Em 2020, Katy Perry foi obrigada a desembolsar 2,7 milhões de dólares para o rapper Flame por copiar dezesseis segundos de uma composição sua na canção Dark Horse, mas conseguiu reverter a sentença e o outro lado está recorrendo. Já a banda Led Zeppelin se livrou em março de uma longuíssima ação que apontava Stairway to Heaven como plágio. Procurados por meio de seus empresários, nem Adele nem Greg Kurstin quiseram se manifestar.
OUÇA
A sobreposição das músicas Mulheres (Toninho Geraes, 1995) e Million Years Ago (Adele & Greg Kurstin, de 2015). O áudio, na voz da cantora Juliana Viana, será usado pela defesa do compositor brasileiro no processo contra a estrela britânica:
CORTA E COLA
Muitos famosos já foram acusados de plágio, uma infração que a internet hoje facilita e expõe
BEATLES
Ao lançar Abbey Road, em 1969, foram acusados de copiar letra e melodia de You Can’t Catch Me, de Chuck Berry, em Come Together. Acabaram chegando a um acordo sigiloso.
ROD STEWART
O artista britânico admitiu que de fato houve “plágio inconsciente” do refrão de Taj Mahal, de Jorge Ben Jor, na sua canção Do Ya Think I’m Sexy. O caso foi resolvido extrajudicialmente.
KATY PERRY
A cantora americana teria se apropriado de trechos de Joyful Noise, do rapper Flame, em Dark Horse. Condenada a pagar 2,7 milhões de dólares, apelou e ganhou, mas Flame recorreu.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755