Eles tratam de Epicuro, Schopenhauer e Hegel como quem lida com as ideias de Anitta, Whindersson Nunes e Bruna Marquezine. Nas redes sociais somam mais de 4,5 milhões de seguidores no Instagram, 3,3 milhões no Facebook, para lá de 300 000 no Twitter e 1,5 milhão no YouTube. São 150 palestras anuais, parte delas em teatros, com contrato médio por empreitada estimado em 25 000 reais. Juntos, já venderam 3,5 milhões de livros — 1,2 milhão de exemplares em apenas uma editora, a Planeta, que acaba de lançar Cortela&Karnal&Pondé — Felicidade — Modos de Usar (160 páginas, 42,90 reais), fruto de um debate recente. Bem-vindo ao mundo da filosofia pop, na expressão criada por Gilles Deleuze (1925-1995) nos anos 1970, quando o mundo ocidental começou a misturar epistemologia com história em quadrinhos. Mario Sergio Cortella (65 anos), Leandro Karnal (56) e Luiz Felipe Pondé (60) são, hoje, os três mosqueteiros do pensamento no Brasil — ladeados por um quarto personagem, o D’Artagnan da turma, Clóvis de Barros Filho, que prefacia o mais recente volume da trinca.
Não é comum que intelectuais, todos eles atuantes em universidades de ponta (USP, PUC e Unicamp), com sólida formação acadêmica, virem ídolos populares. Já houve fenômenos semelhantes, como o sucesso global de Umberto Eco (1932-2016), autor de O Nome da Rosa, o mais notório exemplo de quem fez a viagem das arcádias para o asfalto. Explosões de interesse pelos valores éticos e morais da existência humana, como aquela que Eco alimentou e os brasileiros ecoam, merecem sempre celebração por ser invulgares. Diz Luciano Marques de Jesus, professor de filosofia da PUC-RS: “É notável o fato de eles tirarem a filosofia da academia e a levarem para a casa, para a vida das pessoas, de forma que elas entendam conteúdos complexos”. Para Emrys Westacott, professor de filosofia da Universidade Alfred, de Nova York, “é vital que os cidadãos continuem a pensar criticamente em um mundo banhado de falsidades, e a filosofia é um antídoto contra as mentiras”.
Como não têm vergonha de ser pop, Cortella, Karnal e Pondé costumam citar personagens badalados, figuras coladas ao imaginário universal, porque essa é a regra do jogo. É um recurso de aproximação que tem funcionado, atrai leitores e faz as plateias abrir a boca de surpresa e satisfação, como diante de mágicos que tiram coelhos da cartola. Cortella dá as mãos a Guimarães Rosa, e do escritor mineiro pinça uma tirada — “Não convém fazer escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro” — para então concluir: “Isso é um sinal de inteligência imensa de alguém que conseguiu observar a vida e olhar um pouco o que significa existir. Não convém fazer escândalo de começo, só aos poucos o escuro é claro”. Karnal vai de Hamlet, de Shakespeare: “Em 2010, eu adquiri a experiência-chave de Hamlet: fiquei órfão (…). Entendi que a perda do pai, que significa em primeiro lugar a perda de uma referência da geração anterior, faz com que você envelheça brutalmente”. Pondé bebe da frase inicial de Anna Kariênina, de Tolstói — “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira” — para refletir: “Quem conhece o livro sabe que é a história de uma mulher adúltera que trai o seu marido porque se apaixona perdidamente por um conde e acaba pulando para debaixo de um trem. Dei um spoiler, mas Anna Kariênina não é um livro que você lê para saber o final. Você lê Anna Kariênina para saber quem você é, do que você é capaz — como qualquer clássico”.
Só aos poucos a trinca conquistou espaço no Brasil — e a fama coincidiu com os humores do país, que em 2013 foi às ruas sabe-se lá por quê, em 2015 e 2016 bateu panelas para tirar Dilma Rousseff e em 2018 elegeu a direita radical de Jair Bolsonaro. Nesse processo, tudo se esgarçou, famílias romperam e, num país rachado ao meio, tempo de homens partidos, muita gente procurou o único remédio à mão: pensar. À direita, à esquerda, não importa o matiz ideológico — basta simplesmente pensar. Parte da academia faz cara feia por não gostar de ver eméritos professores transformados em ídolos de rock, e os acusa de vender autoajuda (Jean-Paul Sartre foi rotundamente criticado por ter subido em banquinhos e empunhado megafones na Paris de maio de 1968, ovacionado pelos estudantes, mesmo que depois tenha reconhecido não ter compreendido nada: “Não pude entender o que aqueles jovens queriam, então acompanhei como deu, fui conversar com eles na Sorbonne, mas isso não queria dizer nada”). Há também, na outra ponta, quem, à procura de roqueiros cabeludos, na busca de doses palatáveis de conhecimento, alegue se decepcionar com apresentações e páginas que soam herméticas. A verdade, como sempre, está no meio. Cortella, Karnal e Pondé se alimentam dos becos sem saída brasileiros para oferecer conforto cerebral.
Embora vivam todos em São Paulo, é raríssimo que se encontrem — o que ocorre em um ou outro evento muito especial. Nunca saíram para tomar cerveja e jogar conversa fora, apesar de se conhecerem há décadas. Levam vidas apartadas, ainda que andem na mesma estrada. VEJA os reuniu para uma sessão de fotos e um bate-papo informal. “Um milagre”, diz Pondé. O troco irônico vem de Cortella, que brinca com a condição de ateu do colega: “E você acredita em milagres?”. É assim uma reunião de filósofos, feita de rápidas tiradas, muitos sorrisos, mas sem espaço para gracejos tolos — rir da antiga careca de Karnal e da nova barba de Pondé vale. Gostam de comentar as críticas que recebem, por considerá-las injustas, para dizer o mínimo. “É engraçado que, embora estejamos juntos em várias situações, parte das pessoas do mundo digital ache que somos inimigos. Há uns quatro anos gravamos um programa de TV, e ele já foi editado milhares de vezes com títulos como ‘Pondé humilha Karnal e Cortella’ ou ‘Cortella arrasa Pondé’, e assim por diante”, diverte-se Cortella.
Riem, porque rir, além de pensar, ressalve-se, talvez seja mesmo a única terapia grátis que nos resta. De certo modo, ao tratar da felicidade e seus modos de usar, filosofando em português, a tríade responde a uma frase do recente romance de Michel Houellebecq, Serotonina: “…hoje em dia devemos considerar a felicidade como um sonho antigo; pura e simplesmente não há condições históricas”. Há, sim, como demonstram Cortella, Karnal e Pondé.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650