Para além dos livros que falam sobre a história das pandemias, ou tramas apocalípticas ressuscitadas pelo período atual, obras literárias que discorrem sobre confinamentos, voluntários ou não, e a transformação que vem da solidão se mostram leituras interessantes para se assimilar as idiossincrasias do momento pelo qual o mundo passa. VEJA selecionou cinco livros que não só reforçam o tema, como são leituras prazerosas para entreter nesta quarentena. Confira:
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Clique e AssineCem Anos de Solidão
Não é para menos que o romance Cem Anos de Solidão consagrou ao colombiano Gabriel García Márquez um Nobel de Literatura. De título sugestivo em tempos de quarentena, a obra do gênero realismo-fantástico segue a família Buendía, que, ao fugir da própria consciência pesada, funda o fictício vilarejo de Macondo, uma metáfora assumida para a América Latina e seu passado colonial. A cidade é então tomada por uma chuva que dura quatro anos e que impõe um confinamento inescapável aos habitantes, forçados a adiar todo e qualquer plano para o período da estiagem. Ainda que a quarentena da vida real esteja sendo motivada por uma pandemia viral e não por um aguaceiro, o confinamento de Macondo em muito se assemelha ao que o mundo tem experienciado nos últimos meses, especialmente no que diz respeito ao convívio familiar e consigo mesmo.
a máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, editora Biblioteca Azul
António Jorge da Silva é um barbeiro de 84 anos e recém-viúvo entregue a um lar de idosos pela família. Sozinho, o “senhor Silva” passa a esperar pacientemente pela morte e se entrega a casmurrice, convicto de que nenhuma alegria poderia suceder a morte da grande companheira Laura. Com lirismo e sem letras maiúsculas, o fio narrativo de a máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, aos poucos introduz a ideia de que nunca é tarde para viver o que a vida ainda tem a ofertar, ao mesmo tempo em que tece boas metáforas para a história de Portugal, país onde o escritor, nascido na Angola, fincou raízes. Pedida certa para enxergar a solidão com outros olhos e enternecer o peito em tempos tão desesperançosos.
A Metamorfose
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Uma barata, mais exatamente. Sem a menor cerimônia, a primeira frase do clássico A Metamorfose já dita o enredo da envolvente história de Franz Kafka, em que seu protagonista se vê transformado, do dia para a noite, em uma criatura asquerosa. De provedor, o caixeiro-viajante logo se torna um estorvo para a família e é trancafiado no quarto, obrigado a conviver com o próprio asco e com a transformação externa que antecede a interna. A leitura de A Metamorfose promete, na quarentena, um bom entretenimento intelectual além de reflexões sobre como é passar por uma situação que está fora de seu controle e de todos ao redor.
Assombrações
O belíssimo romance bebe da fonte de três matérias-primas do jornalista e escritor italiano Domenico Starnone: relações familiares, velhice e a cidade de Nápoles. O resultado é um drama elegante sobre um idoso ilustrador no crepúsculo de sua carreira, Daniele, que cuida a contragosto do neto Mario, de 4 anos, enquanto a filha viaja. Encerrados por 72 horas em sua casa de infância – um apartamento no centro de Nápoles – , o velho rabugento e o neto ultrapassam a barreira da estranheza e embarcam em aventuras emocionantes. Assim, o livro acompanha a mudança brusca de uma relação familiar provocada pela obrigatoriedade da convivência forçada.
Meu Ano de Descanso e Relaxamento
Para quem pensou pelo menos uma vez: que tal cancelar 2020? Esse livro é para você. A narradora inominada de Meu Ano de Descanso e Relaxamento, da autora Ottessa Moshfeghquer, quer dormir por um ano inteiro. À primeira vista, parece um compilado de “first world problems”: o que uma bonita jovem moradora de um belo apartamento e herdeira de uma polpuda fortuna pode ter a reclamar? Acontece que a hibernação forçada – resultado de um coquetel de remédios prescritos por uma psiquiatra – é, na visão da narradora, uma forma de autopreservação em resposta ao vazio e à tristeza crônica, agravados pela morte dos pais e pela solidão. Entre dramas de saúde mental e desejos de alienação em tempos de excesso de informação, o livro mistura o timbre melancólico da protagonista a interessantes momentos de humor ácido – e pode ser uma boa pedida aos leitores de quarentena que só querem dormir e, com licença poética da famosa música da banda Green Day, acordar quando setembro acabar.