Nas ruínas de Pompeia, numa viagem em família, um garoto não se comove com a tragédia ocorrida ali há quase 2 000 anos. “Eu já tinha meus problemas”, pensa ele. As inquietações infantis passam pela relação com seu rosto: dentes incisivos avantajados lhe garantiam uma infinidade de apelidos maldosos. Ao voltar do passeio, o menino toma uma atitude drástica: cai deliberadamente com a boca no chão para se livrar da pecha de dentuço. Mas só uma lasquinha se vai. Décadas depois, em uma discussão por ciúme com a mulher, seu desejo enfim se realiza: ela atinge sua boca com um cinzeiro, e os incisivos se quebram. O ato de violência abre o livro Dentes, do italiano Domenico Starnone, que acaba de ganhar edição no Brasil.
Publicada originalmente em 1994, a novela marca uma virada na escrita do autor, que ganharia fama mundial com o romance Laços, de 2014. Dotado de ironia fumegante, Starnone escreve sobre famílias que se escondem sob a aparência da perfeição. A partir de Dentes, ele passa a observar as agruras da dita masculinidade tóxica, sempre embaladas de forma tragicômica por eventos banais. “Meus livros retratam o enfraquecimento das certezas que definiam o que é ser um homem”, disse Starnone a VEJA.
Natural de Nápoles, o autor e professor de 79 anos passou a questionar esses padrões na juventude, na década de 60, com a ascensão de movimentos feministas: “Cresci nos moldes patriarcais, experimentei a crise do masculino, suas adaptações e autocríticas. Ainda é um processo em andamento”. Em Dentes, o protagonista, professor “Oico” — som que ele consegue pronunciar quando lhe perguntam seu nome após o acidente dentário —, é um pai ausente e um profissional mediano, que vive com Mara, ex-amante vertida em oficial. A busca por um dentista que arrume o estrago causado pela briga pauta a desventura do professor, enquanto o buraco na boca se manifesta como um vazio existencial mais amplo a ser preenchido.
Na vida real, Starnone vive sob a sombra de uma mulher: a best-seller Elena Ferrante. Sua esposa, Anita Raja, é tida como o nome por trás do pseudônimo. Há quem diga, porém, que o próprio Starnone seria o autor das obras feministas de Elena. O italiano chegou a ironizar o boato, dizendo que Elena só escreve sobre mulheres que se lamentam. A piada reforçou outra teoria: a de que os livros de ambos seriam parte de um mesmo universo. O “homem Starnoniano”, como seus protagonistas são chamados, tem mais dúvidas do que certezas, trai e é traído — e lamenta suas inseguranças. São homens em permanente (re)construção.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811
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