Luiz Bolognesi, roteirista de filmes como Bicho de Sete Cabeças, Elis e Bingo – O Rei das Manhãs e diretor da animação Uma História de Amor e Fúria, queria fazer um documentário sobre os pajés. “Não de um ponto de vista exótico, mas de que eles reúnem o conhecimento dos povos indígenas, transmitido em narrativas orais. Eles têm um conhecimento não só de cura, mas também científico, ancestral”, disse a VEJA durante o Festival de Berlim, onde Ex-Pajé foi exibido na mostra Panorama e ficou entre os três favoritos do público. O filme está entrando em cartaz agora no Brasil.
Na pesquisa, ele conheceu Perpera, da tribo Paiter Suruí, que se definia como ex-pajé – daí o título do longa. “Ele explicou que não podia mais ser pajé porque o pastor falava que ele era do diabo. Mas me contou que, ao mesmo tempo, não podia dormir à noite de luz apagada porque os espíritos batiam nele, bravos por ele ter parado de cantar para eles, de rezar para eles e de tocar as flautas mágicas.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O Perpera aceitou imediatamente quando você propôs de fazer o filme? Quando disse que queria fazer um filme sobre ele, Perpera pediu um pouco de tempo para pensar. Daí a pouco ele falou: “Tá bom, vamos fazer”. Conversei com toda a comunidade, e eles foram super receptivos. Eles têm uma noção da importância da mídia. Eles foram muito gentis e nos receberam. Minha postura foi não fazê-los entrar no tempo do cinema, mas sim a gente entrar no tempo deles. Não tinha essa coisa de que o horário de filmagem era das 8 até não sei que horas. A gente ia em função da vida deles. Se eles param na hora do sol quente, nós paramos também. E isso fez com que houvesse uma confiança, e com isso eu consegui centrar muito na intimidade. Meu grande desafio era fugir dos clichês. Para isso, tinha de me apoiar em alguma coisa, precisava chegar na intimidade deles.
Encaixar-se no cotidiano deles foi logisticamente complicado? Foi complicado estar ali com o equipamento porque é muito quente, muito úmido, não tem ar condicionado. Mas, por outro lado, nos ajudou porque não tem internet, wi-fi, telefone, televisão. A dificuldade virou a nossa força. Porque à medida que a gente se desconectou deste mundo, a gente pôde se conectar com o deles. Minha equipe de cinco pessoas mergulhou ali. E esse mergulho fez o filme ficar muito mais forte. A gente começou a ver o mundo com o tempo deles. Acabou de jantar, não tem nada para fazer. Então você fica conversando, que é o que eles fazem. Senta na rede e fica contando piada, que é o que eles fazem. A gente conseguiu ter uma troca muito grande, e o filme espelha isso.
Tinha um roteiro? Eu não fui com um roteiro. Anotei ideias. E aí fui construindo com eles no dia-a-dia, o que é uma atitude totalmente indígena. Eles não são de planejamento, são muito focados no aqui e agora. Resolvi seguir um pouco essa premissa deles. É claro que eu estava sempre pensando: Esta cena que eu estou filmando vai ligar com o quê? Esta história que ele me contou não me interessa, mas aquela me interessa muito, então vamos refilmar para ele me contar. Havia um pensamento de dramaturgia, mas eu não estava com a ideia pronta da história.
Mas isso foi tranquilo para você ou deu umas inseguranças? Foi muito confortável de fazer, foi muito gostoso, mas eu estava inseguro o tempo todo. Quando você não está com uma dramaturgia amarrada, que você testou com várias pessoas, há um componente de imponderável muito maior. Então eu tinha uma insegurança muito grande. Será que o filme vai funcionar? Será que vai agradá-los? Será que não vai fazer alguma coisa que fira a imagem deles? Que os antropólogos digam que é vulgar? E só depois disso tudo eu tinha medo dos críticos. Antes eu tinha medo deles e do pessoal da antropologia. Tanto que, quando eu estava terminando a edição, eu mostrei para alguns líderes indígenas e para alguns antropólogos para ver se eu não estava fazendo uma bobagem. Eles gostaram muito.
Acha que ter tanta experiência com roteiro te ajudou a ir construindo essa dramaturgia? Totalmente. Apesar de eu não estar com um roteiro escrito, acho que tomei essa atitude ousada porque um pouco eu domino as ferramentas da ficção. Escrevi quase dez longas. Tenho uma noção de quando a história é boa porque significa uma virada na personagem. Ou que algo é interessante porque dá outro ponto de vista. Tal imagem é legal por ser ambígua: ele na porta da igreja é um momento de humilhação, mas também é um ato de resistência. Estava o tempo todo muito atento não a uma narrativa de documentário, mas a uma narrativa de ficção – tanto que o filme parece uma ficção. Apesar de não ter roteiro, as escolhas que eu fazia do que filmar conectavam na minha cabeça uma jornada de personagem que é a jornada da ficção: apresentação, conflito, transformação, revelação. Isso estava no meu subtexto o tempo todo e, claro, que a gente descobriu isso na edição. Tanto que na maneira de filmar, eu decidi que não ia fazer entrevistas, pedi para não olharem para a câmera, que é um recurso de ficção. Então eu digo que meu filme é borderline, entre ficção e documentário. Algumas coisas que eles me contavam, a gente representava. Então teve essa construção.
Num documentário sempre há a questão da responsabilidade de lidar com pessoas de verdade, especialmente porque muitas vezes são pessoas sem vivência de mídia. Para mim, o princípio estético está muito ligado ao princípio ético no ato de fazer cinema. Então, quando você está fazendo um documentário e expondo as pessoas, isso exige uma preocupação ética muito grande de não expor essa pessoa a constrangimento, ao ridículo e tal. Ao mesmo tempo, tem de mostrar as dores e sombras das personagens. Então você anda no fio da navalha. Eu não posso ficar num lugar chapa-branca, de não demonstrar nada, mas não posso avançar num lugar em que eu invada alguns espaços deles. Então eu tinha muito cuidado nos temas que a gente abordava. Eu ouvia o que eles achavam que era importante filmar. Eu sempre fazia essa pergunta: “O que vocês acham importante filmar?”. Por exemplo, um deles me disse: “É muito importante você filmar nós todos trabalhando. Minha mãe trabalhando, eu trabalhando, porque os brancos acham que não trabalhamos. O problema é que os brancos vêm visitar a gente depois das 10 da manhã. Eu trabalhei das 4 às 10. Quando ele chega, não estamos trabalhando, porque não trabalhamos no sol a pino. Não somos loucos”. E isso fazia sentido filmar. Tinha esse respeito e essa preocupação.
Como foi filmar o pastor evangélico? Quando fui pedir para filmar, ele questionou. Expliquei que queria filmar porque estava fazendo um filme sobre os Paiter Suruí, e eles dizem que você é muito importante, portanto você tem de estar no filme. Daí ele disse que os antropólogos não gostavam dele. Respondi que não estava lá como antropólogo, mas como cineasta, e que a diferença era que eu não julgava, eu mostrava. Fazendo um documentário, eu ia abrir a câmera e mostrar o trabalho dele, e as pessoas vão achar o que elas quiserem. Os antropólogos podem achar ruim, outras pessoas podem achar que você está ajudando os índios. Ele gostou da resposta e falou que eu podia filmar. Ele se abriu, e eu tentei filmar com respeito. Tenho todo um cuidado, junto com o fotógrafo, de não fazer de uma maneira que o tornasse ridículo. A gente foi muito respeitoso porque os índios o respeitam. Mas há toda uma série de consequências da presença dele ali que permitem várias avaliações. Eu acho que a gente tomou cuidado de não fazer um juízo de valor específico, mas contar toda uma dimensão. E o principal era filmar tudo do ponto de vista do Perpera, do ex-pajé. Porque o tema da cristianização dos índios não é um tema tão novo. Está na literatura, vem desde o século 16 e já temos filmes sobre isso. O que eu tinha de novo era mostrar isso do ponto de vista interno de um pajé que está vivendo esse processo. Isso nunca foi feito. Aí está a novidade do meu filme, e eu investi nisso.
O que espera que o filme levante de discussão? Meu principal objetivo é nos aproximar do mundo desses povos indígenas, de uma maneira muito humilde e específica, que é mostrar o dia-a-dia de alguns deles e rever alguns clichês que todos nós temos sobre eles: de que não trabalham, de que são pessoas feias, de que são vagabundos, que não são sofisticados, de que não são doces entre eles mesmos. Então meu principal objetivo era aproximar o senso comum do Brasil – eu sei que é um filme de nicho, que é um documentário –, mas aproximar o mundo desses povos indígenas por meio de um povo especifico. Depois eu queria problematizar essa questão que é muito grave no momento que é a demonização dos pajés pelas igrejas evangélicas. Quando mostrei para algumas lideranças indígenas, eles resolveram fazer um manifesto (divulgado durante o Festival de Berlim). Então isso está articulando uma resistência, e isso vai articular uma discussão. O tema, que estava muito escondido, veio à tona. Estava-se falando bastante da violência contra os candomblés, a umbanda, que estava acontecendo nas favelas. Mas não dessa mesma violência contra as aldeias indígenas. O que eu espero com o filme é, claro, ele se afirmar como linguagem, como arte, que é o que ele é, mas trazer essa questão para ser discutida no Brasil e tocar na sensibilidade das pessoas para que mais pessoas digam: “Deixem as culturas existirem”. Isso é saudável. Somos um país multifaces, vamos respeitar as culturas e não massacrá-las. Não vamos passar uma máquina evangélica fundamentalista sobre tudo, porque isso não é bom para o Brasil.