Costumo dizer que já nasci músico. A música era o meu destino e sempre foi a minha vida. Imagine então, de repente, receber o diagnóstico de um distúrbio neurológico que afeta os movimentos. Aconteceu no fim do ano passado, quando soube sofrer de tremor essencial, um mal que, embora comum, eu não conhecia. Alguns sentem o efeito nas mãos, outros, nas pernas. O meu foi na cabeça, uma agonia. No início, a tremedeira era bastante aparente. Me preocupei com que isso comprometesse minha performance nos estúdios, nos palcos. Aos 74 anos, continuo ativo. Acabo de voltar de uma turnê na Europa e nos Estados Unidos, onde divulguei meu novo álbum, D, e passei por dezessete cidades. Com uma vida assim, preciso estar bem e sigo lutando, de forma disciplinada. Houve muita especulação sobre a doença e surgiram até boatos infundados de que seria Parkinson. Não é. Desde o momento em que ouvi aquelas palavras do médico — tremor essencial —, fiquei confiante em que poderia lidar com a situação. E iniciei imediatamente o tratamento para frear os sintomas.
O médico recomendou um medicamento diário e mudança de hábitos, já que a condição, no meu caso, não é genética. Ela está associada a falta de sono e estresse. Passei a cultivar uma rotina mais regrada, à base de alimentação saudável, muita água e, no mínimo, oito horas de sono à noite. Foi uma transformação radical. Sempre dormi de madrugada. Comecei a carreira musical trabalhando em boates, chegava em casa às 5h30 da manhã. Também me acostumei a escrever canções quando as pessoas estavam na cama. Era o período em que me vinha mais inspiração. Hoje, brinco que a madrugada não é mais a senhora do meu destino. Não cometo mais loucuras que tragam prejuízo à saúde. Meu médico tem inclusive me elogiado pela obediência, até em relação às recomendações mais rígidas. Não perco uma consulta.
O aprendizado de viver dentro dos próprios limites é essencial. Depois de cinquenta anos de carreira bem consolidada, entendo que mais ou menos a metade do que um artista faz não é realmente necessário. Já sou, por natureza, diferente de outros músicos. Sou mais contido, retraído, me exponho menos. Nesse ponto da vida, me sinto ainda mais confortável em dizer “não”. Administro melhor minha carga horária, normalmente pesada por concentrar as funções de compositor, cantor, arranjador, produtor e diretor de meus álbuns. A cada três fins de semana de trabalho, por exemplo, reservo alguns dias para descansar e passar um tempo de alta qualidade ao lado da minha família. Longe de mim querer ditar uma regra que se encaixe para todos. Para mim, essa estratégia tem funcionado. A ideia é me manter bem e prolongar a carreira o máximo que puder. Não é hora de parar.
Sempre gostei de misturar gêneros distintos, como jazz, samba e flamenco, viajando nos arranjos e nas letras. Sei que ainda há muito por fazer. A música brasileira de hoje me preocupa. Com a onipresença da internet, onde qualquer coisa viraliza, a qualidade baixou, e tenho aí uma razão para trabalhar. Mas não é só isso. Estar nos palcos, no estúdio é o que me dá prazer. Tenho mais uns vinte shows neste ano, como parte da minha turnê, que passa por todas as regiões do país e se encerra com apresentações em São Paulo, no Vibra, e no Rio, na Jeunesse Arena. Retorno à estrada em março e já estou a toda em um novo disco. Não foi fácil chegar até aqui. Sou filho de lavadeira e vim de uma família pobre de Alagoas. Mesmo após a fama, enfrentei uma série de obstáculos e preconceitos. Em 1979, fui preso porque a polícia achou estranho um preto estar numa loja chique de pianos em São Paulo. Nunca me deixei paralisar — muito menos agora, com o tremor essencial. Me empenho como posso para mantê-lo sob controle. Hoje, reconheço que estou bem graças à minha obstinação em ficar saudável. Agradeço todos os dias por poder seguir trabalhando com o que me faz feliz.
Djavan em depoimento dado a Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856