Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

Do gueto ao palco

Documentários sobre o americano Quincy Jones e o jamaicano Bob Marley retratam duas histórias bem diversas de ascensão social pela música

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h11 - Publicado em 7 dez 2018, 07h00

Quincy Jones mostra ao rapper Doctor Dre as marcas que guardou de sua juventude delinquente: uma cicatriz na mão, causada por um golpe de canivete, e outra no rosto, resultado de um ataque com um picador de gelo. “Eu queria ser um marginal, porque você deseja ser o que você vê”, diz o maestro e produtor no documentário Quincy, da Netflix. Criado em uma vizinhança barra-pesada de Chicago nas décadas de 30 e 40, Jones, hoje com 85 anos, encontrou a salvação no piano que começou a dedilhar na escola. Essa biografia tão exemplar do “sonho americano” de ascensão social guarda semelhanças com a do astro jamaicano Bob Marley, que morreu de câncer, em maio de 1981, aos 36 anos. Criado na favela de Trenchtown, em Kingston, ele esteve a poucas tranças de distância da marginalidade, mas redimiu-se pelo reggae. Em Who Shot the Sheriff?, também disponível na Netflix, o tema é o atentado sofrido pelo músico em 3 de dezembro de 1976, às vésperas de um showmício em apoio a Michael Manley, candidato de esquerda na eleição presidencial daquele ano. Os dramas sociais da Jamaica entram com força nesse episódio.

Dirigido por Rashida Jones, filha do personagem principal, e Alan Hicks, Quincy recupera imagens de uma visita que o artista fez, nos anos 80, à casa onde cresceu. Ele chora ao lembrar a infância difícil. Sua mãe, esquizofrênica, foi afastada do convívio dos filhos quando Quincy Jones tinha 7 anos, mas reaparecia, em circunstâncias traumáticas, já na vida adulta do músico. Certa vez, tentou invadir o clube de jazz em que o filho se apresentava para anunciar que todos ali estavam condenados à danação eterna por ouvir música profana. “Saber de onde você vem o ajuda a ir para onde você quer”, diz o maestro. E ele foi longe, em uma das carreiras musicais mais abrangentes nos Estados Unidos do século passado, com passagens por jazz, soul, funk e hip-hop. Esteve sempre próximo dos gigantes: trabalhou com Frank Sinatra nos anos 60 — o anel que ele ainda hoje ostenta no mindinho direito foi presente do grande crooner — e produziu o disco mais vendido da história da indústria musical, Thriller, de Michael Jackson, lançado em 1982.

Frank Sinatra e Quincy Jones
CARREIRA ABRANGENTE – Quincy Jones (à dir.) e o amigo Frank Sinatra, nos anos 60: o maestro e produtor favorito dos astros (Frank Sinatra Enterprises/Netflix)

Who Shot the Sheriff? faz parte de ReMastered, série da Netflix dedicada a crimes no mundo da música (o próximo episódio tratará do assassinato do rapper Jam Master Jay, do Run-DMC). O centro da narrativa, portanto, está na tentativa de assassinato de 1976, o que permite vislumbrar a vida bandida de que Marley esteve próximo. O ataque ao astro foi um dos picos da escalada de violência que grassou na Jamaica nos anos 70 — violência que se imiscuía na política: a disputa entre Michael Manley, o candidato apoiado por Marley, e seu adversário de direita, Edward Seaga, tinha características de guerra territorial. O documentário tenta sustentar a tese não muito confiável de que os dois tiros que Marley levou foram encomendados pela CIA — naqueles anos de Guerra Fria, temia-se que a Jamaica se aliasse a Cuba, cujo regime comunista tinha a simpatia de Manley (Seaga, de seu lado, alinhava-­se aos Estados Unidos e foi até apelidado de CIA-ga). Mas outras motivações possíveis são aventadas com honestidade pelo programa da Netflix. Pode ter sido uma retaliação por dívidas de jogo — não do próprio Marley, mas de um amigo de infância, o jogador de futebol Alan “Skill” Cole, que se envolveu em apostas fraudulentas geridas pelas gangues de Kingston. Marley teria se recusado a saldar a dívida do “parça”, o que poderia ter irritado os bandidos.

Continua após a publicidade

Depois do atentado, Bob Marley exilou-se em Londres. No ano seguinte, lançou Exodus, seu disco mais internacional, que combinou o reggae a elementos da música disco que então fervilhava nas pistas de dança. O cantor em seguida partiu para uma turnê europeia, como embaixador do reggae e divulgador do rastafarianismo, a peculiar corrente mística que considerava o ditador etíope Hailé Selassié uma divindade sobre a Terra.

O sucesso que os dois filhos negros do gueto alcançaram pela música não cabe no clichê da “superação”. Há diferenças marcantes entre o americano e o jamaicano. Jones não se envolveu tanto em política, mas, a seu modo, foi mais político do que Marley. Sempre soube buscar apoio para suas iniciativas em prol da cultura negra americana. Os últimos momentos de Quincy mostram a inauguração, há dois anos, do Museu Nacional de História e Cultura Afro­-Americana, em Washington, cerimônia pela qual o maestro foi responsável. Lá está ele recebendo de figurões hollywoodianos como Tom Hanks a nomes da política como o general Colin Powell. Bob Marley foi de uma ingenuidade folclórica em seus esforços pela paz. Dois anos depois de ter sido baleado, voltou à sua Jamaica natal para um concerto que celebraria a conciliação entre Manley e Seaga. Os dois inimigos deram-se as mãos sobre o palco. Puro jogo de cena: no mês seguinte, a violência aumentou. Organizadores do concerto que tinham conexões com o crime foram assassinados. Mais tarde, descobriu-se até que havia armas escondidas dentro das caixas de som do show.

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.