‘É calamitosa’, diz cineasta sobre situação de tribos indígenas no Brasil
Diretores de ‘Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos’, que estreia nesta 5ª, protestaram em Cannes pela demarcação de terras e contra o genocídio de índios
Depois de atrair as atenções por causa de um protesto e de ser premiado no Festival de Cannes no ano passado, o longa Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos estreia no Brasil nesta quinta-feira, 18. O filme, que busca retratar de forma realista a cultura e os costumes da comunidade indígena Krahô, teve sua estreia no evento francês marcada por um protesto dos diretores João Salaviza e Renée Nader Messora junto com sua equipe. No tapete vermelho, eles levantaram cartazes em defesa da demarcação de terras e contra o genocídio indígena no Brasil.
“Foi muito importante transformar aquele momento de relevância simbólica, que é o tapete vermelho em Cannes, num momento de relevância politica”, afirma Salaviza em entrevista a VEJA. “Achamos que podíamos usar aquele espaço, foi um consenso fazer o sacrifício de colocar um sapato, por exemplo, porque na aldeia só se usa chinelo, a gente filmou um longa durante nove meses de chinelo”, conta Renée.
O esforço não foi em vão. A manifestação chamou a atenção da imprensa internacional, como a do jornal americano The New York Times, que incluiu a foto do protesto em sua galeria de imagens mais marcantes do festival. “Houve uma espécie de indiferença nas fotografias, nós não éramos a atração principal daquela noite”, afirma Salaviza. “Mas no momento exato em que exibimos os cartazes, começou uma chuva de flashes.”
O protesto aconteceu em maio do ano passado – antes de qualquer indicativo sobre qual deveria ser o resultado das eleições presidenciais de outubro. De lá para cá, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) transferiu da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas e criticou, inclusive nesta semana, a extensão desses territórios assegurados às populações indígenas.
Renée afirma que é “calamitosa” a situação de algumas tribos indígenas que tiveram terras com demarcações diminuídas ao longo dos anos. “O que acontece hoje no Brasil, principalmente nesse novo governo, é calamitoso. A tendência é piorar. Esse discurso de ódio contra o indígena, de que o índio não precisa da terra, vai entrando nessas pessoas que já são mal-intencionadas em lugares onde não existe presença do Estado.”
Retrato quase documental
Apesar da posição ativista dos diretores, o longa não possui o mesmo caráter, e tampouco esse era o objetivo. “Nosso foco era o Ihjãc (o protagonista), não era dar conta da questão indígena, ou dos problemas que os Krahô enfrentam, ou da aldeia Pedra Branca. São 500 pessoas (na aldeia), não existe uma coisa homogênea, igual”, diz Renée.
Chuva É Cantoria… conta a história de Ihjãc, jovem da etnia Krahô, de Pedra Branca (no Tocantins). Após ser surpreendido pela visita do espírito de seu pai, ele se vê obrigado a organizar uma cerimônia para que o espírito possa partir para a aldeia dos mortos. Relutante e querendo fugir também de seu destino de se tornar um xamã, ele parte rumo à cidade, enfrentando as dificuldades de estar longe de seu povo e de sua cultura.
A trajetória de Ihjãc, contam os diretores, foi inspirada na experiência real de um jovem da aldeia de Pedra Branca, que eles conheceram durante o período que passaram por lá, algo que começou muito antes do início das gravações. Desde 2009, Renée promove oficinas de audiovisual para os Krahô, para que eles possam registrar seus rituais e costumes. Salaviza se juntou a ela em 2013 no projeto.
O retrato quase documental de uma parte da comunidade foi realizado com membros da própria aldeia – o núcleo familiar do jovem Ihjãc -, que interpretam eles mesmos no longa. O resultado é uma visão realista, que escapa da perigosa armadilha, um tanto comum no cinema, de mostrar o índio como uma figura caricata. “É um filme sobre um outro Brasil, que poucas pessoas conhecem”, diz Salaviza.
Para Renée, é o tema do luto, universal, que torna o longa passível de compreensão e identificação por públicos tão diferentes nos mais de sessenta países onde já foi exibido. “(O filme mostra) como essas pessoas que estão lá no meio do coração do Brasil lidam com essa questão”, explica a cineasta. “E isso pode chegar para todo mundo.”