Elena Ferrante e Domenico Starnone: os novos livros do (suposto) casal
Os autores voltam a explorar os bastidores das relações familiares em belas obras — enquanto ambos, na vida real, são alvo da curiosidade alheia
Em artigo publicado há alguns anos na imprensa italiana, Elena Ferrante evocava sua primeira leitura de Madame Bovary, a obra-prima do francês Gustave Flaubert (1821-1880). O impacto da narrativa, as aproximações da língua francesa com o dialeto napolitano da autora, a memória do local, todos esses elementos emergem de um modo muito familiar ao leitor habitual de Elena. Até mesmo seu tema central no artigo, a frase da personagem Emma Bovary sobre sua filha — “como é feia esta menina” —, não destoa do universo ficcional da autora. Que efeitos podem ser desencadeados a partir de uma declaração às claras, assim, de uma mãe a sua filha? A questão move A Vida Mentirosa dos Adultos, o novo romance da celebrada e misteriosa escritora italiana.
Na obra, que chegou ao Brasil neste mês, primeiro aos assinantes do clube de livros Intrínsecos — e nas lojas em setembro —, a protagonista Giovanna ouve o pai dizer que ela se parecia cada dia mais com sua tia Vittoria, cuja reputação era de uma mulher em que feiura e maldade convergiam. De uma frase entreouvida pela jovem de 12 anos, a autora constrói uma narrativa que ganha intensidade à medida que a vida da garota e a daqueles em seu entorno sofrem suas sortes e reveses.
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O enredo leva Elena de volta aos bastidores das relações familiares e de amizade para além das aparências. A fórmula embala sua obra de 12 milhões de livros vendidos, número impulsionado pela popular Tetralogia Napolitana, iniciada por A Amiga Genial (2011), vertida pela HBO em série de TV — A Vida Mentirosa dos Adultos também ganhará uma adaptação, a caminho na Netflix.
O merecido sucesso de Elena proveniente da alta qualidade literária vem acompanhado de uma face superficial: o burburinho que cerca a verdadeira identidade da autora. Em 2016, o jornalista italiano Claudio Gatti revelou que, segundo suas investigações, Elena Ferrante seria, na verdade, Anita Raja, tradutora da mesma editora que publica os livros dela e esposa de um de seus prestigiados autores, o também italiano Domenico Starnone. A dedução de Gatti era simples: o enriquecimento do casal coincide com a publicação da tetralogia. Boatos ainda diriam que Starnone seria o autor dos livros de Elena. O casal primeiro negou, e depois silenciou.
Starnone passa longe da fama e do sucesso de Elena. Mas, por conta própria, se impõe como uma das mais poderosas vozes da ficção contemporânea. Ele lança agora Segredos, o último lance de uma “trilogia sentimental” composta dos belíssimos Laços (2014) e Assombrações (2018).
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Sua prosa elegante e envolvente, com dramas familiares intrincados ao cenário napolitano, remete à de Elena. Ainda que seu esquema narrativo seja em tudo diferente, o terreno em que se move guarda semelhanças: das falsas calmarias passa-se facilmente à zona de guerra e ao conflito violento.
Em Segredos, um professor se envolve com uma ex-aluna. Antes da separação definitiva, eles firmam o pacto que desencadeará a torrente de emoções da trama: ela propõe que cada um revele ao outro seu segredo mais terrível, entregando-se assim de uma forma plena. A relação, porém, se encerra, em vez de se fortalecer — mas não os laços entre eles. Os segredos da vida privada de Starnone e Elena, enfim, são bem menos interessantes do que aqueles oferecidos nos livros do casal — ops, suposto casal.
Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691
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