Desmistificar a figura de Tiradentes, tornado mártir da Inconfidência Mineira por uma traição ainda no século XVIII e herói nacional após a Proclamação da República, que nasceu em busca de personagens que traduzissem e amplificassem o sentido de nação, é um dos pontos positivos de Joaquim, longa do pernambucano Marcelo Gomes em cartaz agora no país, depois de uma passagem pelo Festival de Berlim no início do ano. Não é o melhor filme de Gomes, que se notabiliza mais por Era uma Vez Eu, Verônica (2012), com Hermila Guedes no papel principal, e especialmente pelo poético Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), mas tem o mérito de encontrar uma nova forma de acessar e desmontar o mito, ainda que possa criar outro – tudo o que se tem de documento histórico sobre Tiradentes são a sua certidão de nascimento e os depoimentos que prestou depois de preso, o resto é criação do diretor.
O protagonista de Joaquim é o Tiradentes pré-revolução. Um brasileiro, vivido por Júlio Machado (Trabalhar Cansa), descendente de portugueses, que vivia no que eram as Minas Gerais setecentistas, um desmundo só, agoniado com piolhos na cabeça, amasiado com uma escrava negra e dividido, na lida profissional, entre a rotina de funcionário da Coroa Real e o bico de dentista – ou de protético, como um colonizador o chama, em certo momento.
Joaquim testemunha no dia a dia a brutalidade e a corrupção das relações impostas pela Matriz aos colonos. Seu sonho é ser promovido a tenente, mas para isso precisa vencer a concorrência de um português que age em nome da Coroa e em nome dela tira diversas vantagens, conhecidas (e provavelmente compartilhadas) com o seu superior, como a de subornar traficantes de pedras preciosas. A lei de então, vale lembrar, prevê um imposto pesado sobre a exploração de minérios: um quinto do ouro encontrado deve ser entregue aos colonizadores, e muitos tentam burlar a regra fugindo com o que encontram.
Preta, apelido que dá à amante, é maltratada e abusada diariamente por seu dono, um português que ela acabará assassinando, diante da passividade do alferes, de quem cobra a todo tempo uma atitude. Depois de matar, ela vai se refugiar em um quilombo, um dos tantos nascidos ao redor dos focos de exploração de minérios do interior do Brasil.
Em meio a essa existência desgraçada, Joaquim vai entrando em contato aos poucos com ideias revolucionárias. Ouve falar da Independência dos Estados Unidos, que teria lançado ecos sobre a Revolução Francesa, e conhece um dos padres e um dos poetas – o personagem não tem nome, pode ser tanto Tomás Antônio Gonzaga como Cláudio Manoel da Costa ou Alvarenga Peixoto – envolvidos no levante, com quem bebe e toma livros emprestados.
É a gênese do Tiradentes que terminará esquartejado – ele é a parte mais fraca, a pobre, entre os cabeças da revolução, e por isso cabe a ele cooptar os camponeses – que Joaquim apresenta, ao lado de um panorama cru do Brasil do século XVII, recriado por Marcelo Gomes a partir da imaginação e de livros que indicam o que era esse pedaço do mundo então.
Mas, ainda que o filme permita uma leitura política, ainda que seja possível ver nele um homem em luta contra a opressão, por exemplo, ele deixa dúvidas sobre as reais motivações do alferes. Da insurreição a que irá aderir, depois da série de revezes que enfrenta na vida pessoal e profissional, Tiradentes carrega uma centelha apenas. A explosão pode bem ter surgido de um desejo de reparação, e não de fazer a revolução. Uma interpretação bem propícia para tempos de Operação Lava Jato. E de um Brasil desfalcado de figuras que se levantem — e se elevem acima do tacanho.