A gênese de uma grande obra literária é um mistério que a crítica jamais saberá decifrar plenamente — e o testemunho dos próprios autores às vezes gera mais perguntas do que respostas. Alguns anos após a publicação de Sagarana, Guimarães Rosa escreveu uma carta a João Condé, explicando a gestação de seus contos. Primeiro, decidira escrever uma série de “histórias adultas da carochinha”; só depois pusera-se a pensar na localização dos relatos. “Podia ser Barbacena, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que escolhi.” Rosa, como sabemos, voltou ao chão real de sua aldeia para engendrar alguns dos momentos mais luminosos e universais de nossa literatura; a mim, contudo, sempre me fascinaram aquelas duas misteriosas divagações: Neo-Baratária e o espaço astral. “Baratária” talvez seja uma referência a certa ilha imaginosa que Sancho Pança falsamente recebe como feudo em Dom Quixote — uma travessura erudita, portanto, como tantas que Rosa gostava de urdir. A alusão cosmonáutica também tem jeito de ironia ilustrativa: parece significar, apenas, que o autor fez um longo périplo mental antes de retornar ao sertão mineiro. Não pretendo sugerir, portanto, que os jagunços fossem astronautas; mas certas brincadeiras revelam processos profundos, que só se deixam mostrar de forma oblíqua. Como argumenta Braulio Tavares no interessantíssimo livro A “Pulp Fiction” de Guimarães Rosa (Marca de Fantasia, 2008), há indícios de que Rosa apreciasse mesmo a literatura fantástica e especulativa, incluindo a ficção científica e outros gêneros que a crítica brasileira tradicionalmente desprezou.
Os primeiros contos publicados pelo demiurgo de Cordisburgo parecem inspirados nos relatos de terror e aventura de Edgar Allan Poe: é o caso de O Mistério de Highmore Hall, peripécia gótica situada num castelo escocês, e Chronos kai Anagke, em que um jovem desnorteado assiste a uma partida de xadrez entre o Tempo e o Destino. É fácil concluir que, nesses relatos juvenis, Rosa ainda não fosse, de fato, Rosa. Prefiro, contudo, uma interpretação mais simpática aos monstros e astronautas: para apossar-se do sertão “que era mais seu”, Rosa teve de transitar por outros universos sob a égide da pura imaginação. Os liames do insólito e do maravilhoso, aliás, estendem-se também por sua obra madura, como bem demonstra a leitura de Um Moço Muito Branco, A Menina de Lá e A Terceira Margem do Rio.
Jorge Luis Borges disse, certa vez, que a maior parte da literatura universal é fantástica, enquanto o realismo seria um hábito recente e talvez passageiro. Longe de mim nutrir pelo realismo literário a mesma antipatia alardeada pelo escritor argentino; mas já passa da hora de incorporarmos a fantasia e seus congêneres ao cânone brasileiro. Pois, além de todas as funções miméticas que lhe são atribuídas, a boa literatura pode desempenhar um papel menos evidente, porém não menos crucial: explorar as fronteiras da imaginação humana.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612