A francesa Vanessa Springora conta com exclusividade a VEJA as razões de ter mantido em segredo por quase quatro décadas os abusos sexuais que sofreu do escritor Gabriel Matzneff — na época, ela tinha 13 e ele, 49 anos. E enaltece os avanços trazidos pelo movimento #MeToo na denúncia desses crimes, que ela agora revela no livro O Consentimento.
A senhora manteve silêncio por décadas. Por quê? Eu poderia ter escrito o livro muito tempo atrás, pois é uma história que tinha dentro de mim, que carreguei durante anos. Mas o que me impediu foi o silêncio em torno do autor que denuncio em meu livro. Tal silêncio, omertà, como se costuma dizer na França, me desanimava. Hoje eu acho que se eu tivesse escrito quando jovem, teria feito de uma forma muito mais agressiva. Com essas três décadas que se passaram, tendo me tornado mãe, revivendo minha adolescência e minha infância por meio do meu filho, eu me tornei mais madura e mais distante dos acontecimentos.
Quando percebeu que estava pronta para falar sobre os abusos que sofreu na adolescência? O que me convenceu foi o caso de uma menina de 11 anos que foi estuprada por um adulto aqui na França. Sua mãe registrou queixa de estupro, mas a denúncia foi reclassificada para algo menos grave porque a menina teria consentido. Quando soube dessa história, disse a mim mesma que era absolutamente necessário trabalhar a noção de consentimento e explicar que uma criança ou um adolescente não podem consentir com nada.
A história é escrita de uma forma envolvente, bem distante do tom grave geralmente usado em casos de assédio. Como encontrou o tom correto para falar desse assunto tão delicado? Comecei a escrever o livro em 2013, logo depois que Matzneff ganhou o Prêmio Renaudot. Mas eu ainda não tinha coragem de me expor publicamente. O relato tinha uma forma mais ficcional, disfarçando a identidade do abusador e a minha. Percebi que o tom não estava correto porque eu me escondia. Acreditei na autenticidade e na sinceridade desde o momento em que consegui escrevê-lo na primeira pessoa e na forma de uma história direta. Também optei por escrever no tempo presente, como se estivesse revivendo os acontecimentos à medida que eles avançavam. Isso me permitiu voltar ao estado de espírito da adolescente que eu era na época.
Geralmente, quando uma mulher se abre sobre um assunto como este, outras a procuram. A senhora foi abordada por outras mulheres assediadas? Sim. Não falo muito sobre isso porque acho que não devo me expressar em nome delas. Mas, de fato, tive contato com homens e mulheres que também tiveram relações abusivas com Matzneff. Eles me falaram que estavam gratos a mim por ter feito isso por eles. E foi aí que percebi que não tinha escrito só para mim, havia escrito para eles também.
Seu livro foi lançado na esteira do movimento #MeToo. O que pensa desse movimento? É uma revolução, pois modificou a capacidade de escuta da sociedade. Teve início com uma simples hashtag e manifestações de 140 caracteres no Twitter, mas ganhou força coletiva. Comecei a escrever o livro antes de o movimento nascer, mas o #MeToo me ajudou muito, pois abriu o caminho. De repente, percebemos que as vítimas sempre quiseram falar. O que mudou foi a capacidade das pessoas de ouvir o que elas têm a dizer.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729