As telas de smartphones, tablets e computadores se tornaram onipresentes nas duas últimas décadas. Nesta nova era tecnológica, a maior parte das atividades humanas ligadas ao trabalho e ao lazer pode ser realizada diante delas — na verdade, nada parece escapar ao domínio digital. Não seria diferente com a leitura. Estudantes se preparam para provas na companhia indispensável de celulares, acadêmicos esquadrinham textos de fôlego em aparelhos eletrônicos, literatos consomem milhões de palavras em dispositivos como Kindle e afins. Se é inegável que o conhecimento está mais acessível, descobriu-se agora que as telas podem afetar a assimilação da leitura. Segundo estudo conduzido por cientistas da Noruega e da França, o bom e velho papel é mais eficaz para fixar as narrativas.
A pesquisa comparou a leitura de um texto longo em um aparelho digital com a sua versão impressa. Cinquenta jovens adultos com idades em torno de 25 anos, dos quais dezoito homens e 32 mulheres, receberam a novela Lusting for Jenny, Inverted, de Elizabeth George, em um dos dois formatos. Ao fim das 28 páginas, o grupo fez uma série de testes para medir os vários níveis de absorção da história de suspense. Os resultados mostraram que a compreensão foi semelhante em ambas as mídias, mas os leitores da versão impressa eram mais propensos a lembrar com precisão a ordem cronológica do texto. Ou seja: o papel inegavelmente venceu o digital.
A impressão fornece pistas sensoriais e motoras que aumentam o processamento cognitivo. Traduzindo: ao segurar um livro, somos constantemente lembrados de quantas páginas lemos e quantas restam para terminar. Além disso, podemos virar as folhas e voltar no texto conforme acharmos necessário. Tudo o que envolve a leitura, da visualização das palavras ao peso, passando até mesmo pelo cheiro, ativa várias áreas do cérebro de uma só vez, estimulando e facilitando o aprendizado. “É quase como meditar”, diz Anne Mangen, professora do Centro para Educação e Pesquisa em Leitura da Universidade de Stavanger, na Noruega, o principal nome do levantamento comparativo.
A impressão, reafirme-se, é visualmente menos exigente do que o texto digital, que tem por característica ser mais dispersivo em razão dos estímulos emanados da tela e da associação com atividades lúdicas. “Quando você está lendo em um nível superficial, não está necessariamente dando atenção aos tipos de detalhes que permitirão que compreenda a mensagem mais facilmente e melhor”, diz a neurocientista americana Maryanne Wolf, professora da Universidade da Califórnia e autora do recém-lançado O Cérebro no Mundo Digital (Editora Contexto). “As leituras no meio impresso e no digital são, de fato, diferentes.” Maryanne mostra que há uma escala de distração para textos impressos, monitores de computador e leitores digitais. O papel é o menos dispersivo e a tela do computador o que causa mais distração, enquanto os e-books estão no meio por causa da tinta eletrônica e outras características que atenuam o esforço de leitura.
Falar é uma habilidade natural do ser humano. Ler e escrever, não. A alfabetização tem pouco mais de 5 500 anos. Os primeiros livros impressos apareceram em torno de 23 a.C., em Roma e no Oriente Médio. O processo de impressão manual, invenção de Gutenberg, surgiria apenas por volta de 1430. Para a atividade da leitura, usamos outra capacidade que nos é atávica, o reconhecimento de objetos. Na mente do leitor, as palavras são associadas a elementos físicos dispostos em um cenário igualmente real, as páginas. Pesquisas nesse campo demonstram que o leitor, ao pensar em informações absorvidas de um texto, tende a lembrar do ponto físico onde elas foram lidas. O texto impresso, portanto, funciona como um mapa que ajuda nessa localização.
Na perspectiva histórica, o aprendizado da leitura transformou os circuitos neurais do cérebro e o desenvolvimento intelectual da espécie humana. “A transição para uma época digital está afetando todos os aspectos de nossa vida, incluindo o desenvolvimento intelectual de cada novo leitor”, escreveu Maryanne em um artigo para o jornal americano The New York Times. A boa notícia é que o papel desfruta excelente reputação. Realizada no ano passado, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil evidencia que, ao menos entre apreciadores de literatura, 70% preferem os livros físicos. O papel, como se vê, está longe de morrer.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762