‘Fiz para espantar a tristeza’, diz doador de coleção de arte de R$ 1 mi
Fernando Cacciatore de Garcia entregou suas preciosidades ao Museu Nacional
Tive a sorte de crescer em um ambiente embebido em cultura. Da infância, lendo obras de Monteiro Lobato, como O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules, até ser apresentado ao Iluminismo, desenvolvi um interesse especial pela Grécia e pela Roma antigas. Inspirado pelo meu tio-avô Oswaldo Aranha, diplomata no governo de Getúlio Vargas, optei por seguir, também, a carreira diplomática. A função me permitiu ampliar o gosto por esse passado que tanto me atrai. Em 1974, comprei minha primeira peça de antiguidade greco-romana. Enquanto meus colegas investiam em carros de luxo, eu comprava estátuas. Assim formei minha coleção, hoje estimada em 1 milhão de reais e composta de 27 peças, datadas entre 550 a.C. e 550 d.C. Agora, com alegria e sem medo, decidi doá-la ao Museu Nacional do Rio de Janeiro. Espero ver tudo ali na reabertura, prevista para 2022.
Tem um ditado que diz: “Casa roubada, trancas à porta”. Ou seja, a instituição, tomada por um incêndio em 2018, terá um sistema anti-incêndio que vai respeitar a arte que abriga. Por isso sei que será uma boa casa para minhas peças. Sempre tive uma relação afetiva com o lugar. Minha família, italiana de sangue e gaúcha de tudo, é de uma intelectualidade imensa. Meu pai, por exemplo, Hamílcar de Garcia, foi diretor da Editora Globo de Porto Alegre, e, por isso, minha casa era frequentada por figuras como Erico Veríssimo e Mário Quintana. Eu me mudei com minha família em 1953 para o Rio de Janeiro, aos 8 anos, e fomos de um bairro chamado Tristeza para Ipanema, que não tem nada de triste. Meu pai nos levava com frequência à Quinta da Boa Vista, onde está o Museu Nacional. Quando aconteceu o incêndio, fiquei desolado, abatido por muito tempo. Até que tive o estalo de doar minha coleção para compensar um pouco da perda do acervo. Doei para espantar a tristeza, e acho que foi em boa hora.
As peças foram adquiridas ao longo das minhas viagens, de Paris e Londres a Nova York e Amsterdã. Uma das minhas favoritas é a estátua de deus Baco menino. É estupenda, digna do Louvre, inteira de mármore com guirlandas de uvas e folhas de parreira, datada do século I a.C. Foi o preço de um carro, mas um ótimo negócio: um se desvaloriza a cada ano, o outro só se engrandece. Terminei de formar minha coleção em 2004 e logo me aposentei. Saí de cena com um cargo abaixo do de embaixador, e passei a escrever livros.
Solteiro, sem filhos e idoso, hoje com 77 anos, comecei a pensar no que faria com as minhas peças. A princípio, o herdeiro é meu sobrinho Pedro, um rapaz magnífico, mas que não tem compromisso com a minha coleção. Justamente por isso, ele poderia vendê-la para um museu de Nova York e ter 1 milhão de reais no bolso. Mas colecionadores não querem suas peças desbaratadas ou vendidas.
Uma das razões que motivou a doação é que acredito nas instituições do país, na cultura e no convívio harmônico entre nossas raízes europeia, negra e indígena. A Europa nos deixou o imenso legado das instituições, universidades, filosofias. O pensamento lógico veio de lá. A nossa raiz branca está sendo vilipendiada em relação às demais. Hoje em dia, há uma patrulha muito grande em relação a pessoas que pensam como eu, criticadas por defender a cultura branca, pois os europeus foram colonialistas. Não é sobre isso. A principal contribuição do Brasil ao mundo é a convivência harmônica das nossas três raças, e isso tem raízes no Iluminismo — e, logicamente, no Museu Nacional. Doei para recuperar o acervo, mas também para seguir o exemplo de Oswaldo Aranha. Quis fazer algo grande, digno de um familiar dele, e por isso me desprendi das relíquias. Não acho que foi um exagero. Fiz pelo museu — e fiz por mim.
Fernando Cacciatore de Garcia em depoimento dado a Tamara Nassif
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744