Gal Costa, a incomparável musa da Tropicália, morreu em sua residência, em São Paulo, no dia 9 de novembro de 2022, aos 77 anos. Mal o Brasil viveu o susto e a dor da perda, o bem mais precioso deixado pela cantora se viu na berlinda: seu legado musical. A ameaça se deve a uma situação tristemente comum entre artistas brasileiros: uma ruidosa briga entre herdeiros. O filho adotivo de Gal, Gabriel Costa Burgos, e a viúva da artista, Wilma Petrillo, travam uma batalha judicial (e midiática) pelo espólio dela. A briga teve uma escalada nas últimas semanas, quando o filho pediu nada menos do que a exumação do corpo de Gal, por questionar a causa de sua morte — acusando Wilma, ainda, de desrespeitar o desejo da cantora ao enterrá-la num jazigo mal identificado em São Paulo, e não no Rio, onde ela teria planejado.
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Uma juíza paulista descartou o pedido de exumação, mas determinou que seja aberta uma investigação. Ou seja: a disputa virou caso de polícia. De acordo com o atestado de óbito, assinado pela médica que cuidava de seu tratamento, a cantora baiana foi vítima de “infarto agudo do miocárdio causado por neoplasia maligna (câncer) de cabeça e pescoço”. Gabriel diz que não sabia que a mãe estava doente e pede uma autópsia — que não foi feita após a morte, como de praxe quando o óbito se dá em casa. Quem negou o procedimento foi Wilma, empresária e companheira de Gal há quase três décadas, alegando que não era desejo dela.
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A desarmonia familiar provocou lances controversos. Gabriel, que reconheceu Wilma como segunda mãe e esposa de Gal num processo póstumo de união civil, agora diz que foi coagido a fazer a declaração quando era menor de idade e pede a anulação do documento, assim como a retirada de Wilma do posto de inventariante. No contra-ataque, a empresária pediu uma “perícia psicossocial”, afirmando que Gabriel, 18 anos, está vulnerável e é manipulado pela namorada, 33 anos mais velha — requerimento que traz depoimento do psicólogo do rapaz. Wilma quer que ele volte para casa e fique sob seus cuidados. Ele, porém, diz não estar preocupado. “Gabriel vai provar que está apto a cuidar do patrimônio material e imaterial de sua mãe”, disse a defesa do jovem a VEJA.
No nível atual de beligerância, parece haver poucas chances de que o bom senso prevaleça, com ambos entrando em acordo para fazer a divisão do espólio. Fora o potencial de aumentar ainda mais as tragédias pessoais de ambos — um garoto que perdeu de repente a mãe e a dor da viuvez de uma companheira de décadas da cantora —, a disputa coloca sob risco o legado artístico de Gal, repetindo uma sina recorrente entre estrelas da música nacional (leia abaixo). Parte do espólio de um músico é composto por seu catálogo artístico e/ou autoral — e lançamentos póstumos, de coletâneas a reunião de material inédito, ficam estagnados enquanto os parentes brigam nos tribunais. No caso de Gal, um álbum ao vivo com seu derradeiro show no Festival Coala, em setembro de 2022, é um projeto louvável – mas, em meio a tanta incerteza, a Biscoito Fino, última gravadora da artista, não arrisca data para o lançamento.
Em suma, a gestão da memória de artistas como Gal fica à mercê muitas vezes das idiossincrasias dos herdeiros. Um exemplo positivo é o de Elis Regina (1945-1982). Seus três filhos, os cantores Pedro Mariano e Maria Rita e o produtor João Marcello Bôscoli, formam um raro caso de harmonia. “Trabalhar o nome do artista é essencial para manter sua memória viva”, afirma Bôscoli, listando relançamentos, livros, filmes e peças teatrais envolvendo Elis. No ano passado, quando a Volkswagen lançou a controversa propaganda que “ressuscitou” a cantora com inteligência artificial, as reproduções das músicas dela triplicaram. A própria Gal já experimentou efeito parecido: no aniversário de um ano da morte da cantora, a audição de suas músicas cresceu 85% no Deezer.
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Assim como Elis, Gal era apenas intérprete, ou seja, cantava canções criadas por outros. Na famigerada indústria musical, a fatia que cabe ao intérprete dos royalties costuma ser irrisória. O Spotify, por exemplo, paga 3 dólares a cada 1 000 reproduções de uma música. Gal soma 2 milhões de ouvintes mensais na plataforma. Se cada um deles escutar a música Força Estranha mensalmente, a canção renderá 6 000 dólares (32 000 reais). Supondo que o acordo de Gal com a gravadora fosse de 10% desse valor, percentual usual nesse meio, ela receberia 3 200 reais — um trocado se comparado aos 150 000 reais do cachê da baiana com seus shows, verdadeira fonte de renda dos artistas hoje.
A despeito disso, claro, Gal é um nome com potencial estelar. Dois produtores ouvidos por VEJA avaliaram o valor de seu catálogo entre 4 milhões e 5 milhões de reais. Gabriel recentemente afirmou que quer criar uma fundação com o nome da mãe — desejo que ela expressou num testamento feito antes da adoção do rapaz, nos anos 1990, e anulado pela própria. Wilma diz que fará o mesmo, mas afirma que não parou para fazer planos, já que atualmente viveria “sob medicação”.
Discreta ao extremo, Gal era avessa a falar em público sobre a vida pessoal, especialmente as relações amorosas — razão pela qual, dizem amigos, ela não legalizou a situação com Wilma em vida. Ainda assim, ao contrário da alegação do filho, elas formavam notoriamente um casal. Ao longo da trajetória com Gal, a viúva fez mais inimigos que amigos — postura que hoje cobra seu preço: Wilma, 74 anos, é apontada como responsável pela falência de Gal e má administração de sua carreira. A VEJA, ela nega as acusações. “Gal não era manipulável. Ela fazia o que queria. Não cola esse discurso de que ela era coitadinha e eu, víbora, fiz a cabeça dela.”
De fato, Gal sempre foi senhora de seus atos — mas, como tantas estrelas da música, administrava a carreira e seus bens de forma errática — gastava o que tinha e o que não tinha e se negava a fazer contas, dizendo que seu papel era apenas “cantar”. Assim, acumulou uma dívida de quase 4 milhões de reais, paga em 2020, quando vendeu um apartamento por 10 milhões e usou o restante para comprar a casa onde vivia com Wilma e Gabriel. Esse imóvel, hoje avaliado entre 8 milhões e 10 milhões de reais, é o principal bem do espólio. Vanessa Bispo, advogada de Wilma, diz que só de IPTU há uma dívida de 1 milhão de reais. Dois carros na garagem, bem como duas empresas administradas pelo casal, também estão com impostos atrasados. Gabriel sugere que existem joias e obras de arte a serem avaliadas. Com os bens bloqueados na Justiça, tanto Wilma quanto Gabriel vivem de doações de amigos. Enquanto eles brigam, o legado da carismática e solar Gal fica num limbo escuro e perigoso. Ela merecia mais.
Até que a morte os separe
Como a gestão errática e as disputas afetam o legado de ídolos da música
João Gilberto
Ao morrer, em 2019, o compositor estava sob interdição judicial, com dívidas milionárias — e logo os filhos e a viúva iniciaram uma briga judicial. Enquanto isso, o saldo é triste: clássicos como Chega de Saudade (1959) estão fora dos serviços de streaming
Tim Maia
Ação movida por um dos filhos, Carmelo Maia, que detém o controle da obra do pai, proibiu seu meio-irmão e enteado do cantor, Leo, de usar o nome do artista
Legião Urbana
Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos cederam a Renato Russo o nome da banda. Com a morte do cantor, em 1996, o filho, Giuliano, herdou a marca. Desde então, a disputa dos três na Justiça vem impedindo a produção de documentários e discos
Charlie Brown Jr.
Os remanescentes da banda, Thiago Castanho e Bruno Graveto, brigam com Alexandre Abrão, filho do cantor Chorão, morto em 2013, pelo uso do nome — registrado pelo herdeiro. Apenas filmes, livros e coletâneas aprovados por ele podem ser lançados
Com reportagem de Felipe Branco Cruz
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889