Associar-se à figura intransponível de Jesus Cristo não costuma ser bom indicativo de sanidade ou modéstia. O pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) julgava, contudo, ter lá suas razões para tanto ao iniciar a segunda e última de suas célebres viagens ao Taiti, colônia francesa nas remotas ilhas da Polinésia, em 1896. E isso até fazia sentido: frustrado com a má repercussão de seu trabalho na intelectualizada Paris e já com sintomas da sífilis que o levaria à morte sete anos depois, Gauguin representou a si mesmo na tela como o supremo mestre incompreendido. A túnica que lembra uma mortalha e a inscrição “perto do Gólgota”, local da crucificação de Jesus, dão ao artista francês a aura de um Redentor que padece para salvar a arte e alcançar a ressurreição. Autorretrato (Perto do Gólgota) é uma joia da coleção do Museu de Arte de São Paulo, o Masp — e peça-chave da exposição imperdível que estreia na instituição na sexta-feira 28. Raras vezes os brasileiros tiveram a chance de ver por aqui um acervo tão extraordinário quanto o conjunto de quarenta pinturas, gravuras e desenhos de museus ao redor do mundo reunidos em Gauguin: o Outro e Eu. De forma instrutiva, eles são a prova de que o artista de fato ressuscitou: em toda a arte moderna, com Matisse e Picasso à frente, lá está a marca seminal de seus quadros “selvagens”.
Mais que um biscoito finíssimo, a mostra do Masp é corajosa: num mundo pautado pela reparação histórica e pela correção política, os nativos exóticos e as moças sensuais de Gauguin pairam hoje como fantasmas incômodos nas paredes dos museus. Se até coisa de duas décadas atrás suas obras despertavam reverência, um mal-estar antes circunscrito a debates acadêmicos explodiu na era das redes: Gauguin entrou para o rol dos mestres cancelados. O que está na berlinda é justamente essa faceta do enfant terrible que se autoexilou nos trópicos, criando um universo de influência avassaladora — a exposição se centra nesse ponto essencial, deixando de lado, por exemplo, a convivência anterior de Gauguin com o atormentado Van Gogh na região francesa da Bretanha.
O primeiro “crime” de Gauguin denunciado no tribunal virtual é a erotização das jovens taitianas (o francês é espinafrado, aliás, não só por retratá-las: manteve relações com várias meninas na faixa dos 14 anos). Uma das telas mais expressivas da mostra sintetiza a questão. Pertencente ao Metropolitan de Nova York, Duas Mulheres Taitianas (1899) traz as nativas com seios desnudos e lábios provocantes. Em 2011, durante exibição em Washington, a obra foi atacada por uma espectadora que acusou Gauguin de pintar o “mal”. Embora a agressora fosse uma figura delirante, sua atitude ilustra o furor que o artista causa hoje — e não apenas entre as feministas. “Esse vespeiro sempre existiu, e isso agora vai ao encontro da sensibilidade contemporânea”, diz Fernando Oliva, que divide a curadoria da mostra com Laura Cosendey.
Gauguin: His Life & Works in 500 Images
Além das denúncias de machismo e conduta sexual abusiva, Gauguin enfrenta outra acusação cabeluda: a de apropriar-se indevidamente da cultura alheia. Ironicamente, os mesmos adjetivos que sempre foram usados para louvar o pintor — como “exótico” e “selvagem” — hoje são condenados por reproduzir a visão de mundo dos colonizadores sobre os povos originários do Pacífico. Assim, o primitivismo, conceito caro à arte moderna inaugurado com seu uso explosivo das cores e simplificação dos traços, converteu-se em anátema. Em outras palavras: virou palavrão. “Muito do mito de Gauguin foi construído após sua morte por Picasso e outros modernistas. Eram homens brancos europeus criando seus heróis”, diz a curadora Laura.
A mostra resgata um lance que diz muito sobre essas mudanças de humores. Em 1952, quando o autorretrato messiânico de Gauguin chegou ao país, o empresário Assis Chateaubriand, o Chatô, fundador do Masp, exibiu o tesouro numa festa para a elite carioca ambientada com um cenário nada sutil de floresta atrás do quadro e escreveu um artigo no Diário da Noite com título sensacionalista sobre seu caráter “primitivo”: Na Selva Tropical.
A postura do Masp nos dias atuais é outra, claro. “Não nos cabe julgar o artista, mas não podemos colocar os problemas debaixo do tapete”, diz Fernando Oliva. As obras-primas da exposição ganharão alentadas legendas alertando para seus detalhes periclitantes aos olhares sensíveis contemporâneos. Num exemplo típico, a famosa Duas Taitianas na Praia (1891-94), do Museu de Arte de Honolulu, Havaí, é exibida com esclarecimento sobre a pele morena das personagens: “Os tons de marrom refletem os estereótipos criados pelo pensamento europeu cientificista, que insistia em categorizações e tipologias, alimentando a problemática noção de pigmentocracia”.
Os cuidados para não ferir susceptibilidades são compreensíveis e até inescapáveis num mundo que busca, felizmente, refletir sobre abusos e preconceitos do passado para não repeti-los no presente. Mas observar as maravilhas pintadas por Gauguin só por esse viés é obviamente reducionista e empobrecedor. Acima da polêmica selvagem, digam o que disserem, está um mestre estupefaciente e revolucionário.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.