Multidões nas ruas, de verde e amarelo, pela democracia. Vitórias-régias, tucanos e o chão ressecado da seca no Nordeste. Maracanã, Marquês de Sapucaí e o trânsito de São Paulo. Gente com fome. A voz cortante como nunca de Gal Costa entoava o rock clássico de Cazuza a costurar imagens rápidas, frenéticas: “Brasil, mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim/ Brasil / Qual o teu negócio / O nome do teu sócio / Confia em mim”. Assim começava a novela Vale Tudo, de 1988, escrita por Gilberto Braga — lá se vão três décadas, e poderia ser hoje. Ele, talvez mais do que qualquer outro dramaturgo de nosso tempo, ajudou a mostrar o Brasil visto pela TV e, como consequência, construiu um modo de arte, o folhetim de televisão, que seria marca da cultura brasileira. Nada escapava ao olhar irônico, sempre antenado com seu tempo, do escritor carioca. Um outro modo de entender o alcance da obra, com a força dos grandes tratados sociológicos, é um passeio pelos personagens mais marcantes de seus textos, quase sempre vilões. “Quem matou Odete Roitman?”, o país inteiro indagou, já no início da 1989, curioso para saber quem atirara na figura interpretada por Beatriz Segall, que não tinha vergonha de dizer em alto e bom som a respeito do cotidiano do Rio, porque valia tudo: “É um povo preguiçoso, isso aqui é uma mistura de raças que não deu certo”. Braga também foi responsável por outros momentos marcantes como a dúvida sobre quem mandou assassinar o Miguel Fragonard de Raul Cortez, em Água Viva, e dois anos antes, em Dancin’ Days, de 1978, traçara o mais bem-acabado retrato da Zona Sul carioca que mal sabia o que fazer com os derradeiros dias da ditadura militar e da repressão. Entre o cenário com luzes estroboscópicas de boates e o início de um comportamento mais libertino em tramas televisivas, havia as provocações ardilosas de Yolanda de Souza Matos (Joana Fomm) a sua irmã, Júlia (Sonia Braga).
Apesar do sucesso das figuras más, Gilberto Braga, que começou a ganhar destaque com a Escrava Isaura de Lucélia Santos, em 1976, se orgulhava mesmo da Heloísa de Cláudia Abreu na minissérie Anos Rebeldes, de 1992 — a jovem moderna, arguta e decidida, filha de um banqueiro que apoiava o golpe militar de 1964, assassinada ao tentar fugir do Brasil. A cena da morte foi ao ar no dia em que os estudantes saíram às ruas do país, de cara pintada, pedindo o afastamento do então presidente Fernando Collor de Mello. Instado a dizer de onde tirava suas ideias, o novelista resumiu a inspiração, que parece interminável, ainda agora: “Quando escrevi Vale Tudo, estava de saco cheio do Brasil antiético. Se eu era parado por um guarda de trânsito, ele próprio me estimulava a suborná-lo e não pagar multa. Estava mais do que na hora de discutir ética”. Gilberto Braga tinha 75 anos. Morreu com um quadro de infecção generalizada, depois de uma perfuração no esôfago. Era casado havia cinquenta anos com o decorador Edgar Moura Brasil.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762