Grandes museus fazem mea culpa por obras e patronos de cunho racista
Movimentos sociais fazem com que as instituições promovam o revisionismo de obras controversas
Até pouco tempo atrás, quem visitava a Tate Gallery, em Londres, podia deleitar-se na gastronomia do restaurante The Rex Whistler, cujo ambiente amplo ficou conhecido como “a sala mais divertida da Europa”. Meses atrás, contudo, o título foi retirado da descrição do estabelecimento por um motivo justíssimo: adornando a parede principal está o mural A Expedição em Busca de Carnes Raras, na qual o mesmo pintor que dá nome ao recinto retrata uma criança negra escravizada sendo arrastada por uma corda por seus senhores. A imagem, que de divertida não tem nada, gerou protestos na internet, além de críticas por se considerar um lugar assim alegre e pelo “sadismo” de alimentar-se diante de tal brutalidade. O museu foi forçado a alterar a descrição e reconhecer o teor racista da obra. Fechado desde o início da pandemia, o restaurante ainda não teve seu destino selado, mas a controvérsia ajudou a alimentar a onda de revisionismo que cresce na Europa à luz de discussões sobre o racismo e os males do colonialismo. Em um inédito exame de consciência, as instituições apostam agora numa maior transparência com a própria história, escancarando seus pecados ao público.
Discurso antirracista no Brasil: da abolição às ações afirmativas
A tática adotada pelos museus ingleses para limpar sua barra é esperta: em vez de varrer a sujeira para debaixo do tapete, expõe-se o lado odioso do passado por meio de legendas atualizadas e dados que escancaram a relação dos acervos com a exploração humana. Mais nova instituição a engrossar a tendência, a National Gallery divulgou recentemente um estudo ligando quadros do século XIX à escravidão. Batizado de National Gallery e o Legado da Escravidão Britânica, o projeto já identificou 67 patronos que se beneficiaram do regime de maneira direta ou por vantagens financeiras. O primeiro foi John Julius Angerstein, dono da coleção de 38 pinturas comprada pelo governo para inaugurar a instituição londrina. Pintado por Thomas Lawrence em quatro retratos, Angerstein fez fortuna no ramo de seguros marítimos e uma porcentagem desconhecida do dinheiro que financiou sua coleção provém da venda de apólices para navios negreiros e embarcações que transportavam mercadorias cultivadas por escravizados no Caribe. A galeria, porém, optou por não remover nem um quadro sequer de suas paredes. “Queremos gerar discussão sobre essas questões. Reconhecemos que precisamos contar uma história mais ampla. Por isso, somos um dos muitos museus do Reino Unido que estão trabalhando para tornar a origem de suas coleções mais acessíveis e transparentes”, disse a VEJA a porta-voz Tracy Jones. Assim, além do processo de revisão das legendas, os espectadores agora são incentivados a acessar a reveladora pesquisa durante as visitas.
Do lado de cá do Atlântico, o Brasil não ficou de fora da onda de revisionismo na arte. Agendado para reabrir no dia 7 de setembro de 2022, data do Bicentenário da Independência, o Museu do Ipiranga receberá os novos tempos de braços abertos. Com um eixo central repleto de estátuas e retratos de bandeirantes, a instituição paulistana promete romper com a imagem heroica atribuída por séculos a figuras hoje controversas como Borba Gato e Raposo Tavares, responsáveis pela escravização e assassinato de indígenas. Quadros como O Ciclo da Caça ao Índio, de Henrique Bernardelli, não terão o nome revisto, mas serão esmiuçados em vídeos e textos informativos. “Usaremos recursos multimídia para explicitar o caráter problemático dessas nomenclaturas. Não podemos deixar o nome lá como se nada estivesse acontecendo”, pondera Paulo Garcez, um dos curadores da casa. Ele lembra que na tela O Ciclo do Ouro, de Rodolfo Amoedo, um personagem negro aparece rebaixado em relação ao branco sem nenhuma razão além de manter a “lógica racializada do período”. Para contrapor sua imagem de museu vetusto e oficial, o Ipiranga também dará às pessoas de fora a chance de comentar as exposições. “Teremos editais anuais em que selecionaremos vídeos ou intervenções que estarão disponíveis como contraponto, transformando o museu em um lugar de debate”, diz Garcez. Enfim chegou a hora de exorcizar os fantasmas do passado.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767
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